September 26, 2022

Sobre pitacos de filósofos

Vi o tweet sobre filósofo dar pitaco em outras disciplinas e ninguém dar pitaco na dele e confesso que ali está de algum modo um dos meus incômodos com o campo (embora eu não consiga elaborar totalmente).

Eu não acho isso uma função boa pra filosofia. Os filósofos não acabam aparecendo bem na foto pois ao discutir esses temas (que tem cada vez mais precisões e sutilezas) não é raro que acabem gerando um lenga lenga que poderia estar direcionado a qualquer generalidade.

Se não é este o caso, não sei dizer qual o papel que a filosofia deveria ter ou se há um pal. Mas sei que a compreensão do que ela pode ser deve passar por uma vista de suas inúmeras existências ao longo da história e as institucionalidades que condicionaram sua prática.

Durante um tempo pensei em escrever um livro sobre isso (havia até um título), mas confesso que a falta de tranquilidade institucional me desanimou (enquanto me envolvia com outros problemas), mas ao menos resultou um curso sobre isso (ainda que com limitações) como registro.

September 25, 2022

Os efeitos do gueroultianismo na filosofia institucional

[Esse take])(

) é bom. Lembra um pouco as análises do P. Arantes sobre a recepção de Gueroult e o estruturalismo: somente uma análise que abandona a pretensão de comparar verdades filosóficas pode ganhar alguma consistência e produzir análises transmissíveis no nível universitário.

A grande novidade do Gueroult e companhia para o Arantes seria entender que como não é possível em última instância determinar quais ideias são mais ou menos verdadeiras, que o que resta é analisar um sistema internamente, pois ao menos pode-se utilizar o texto como referência.

É mais fácil dizer que uma leitura está correta/incorrrta que uma ideia ser verdadeira/falsa. Para a primeira operação basta olhar para um texto. No caso da segunda seria preciso superar 2500 anos de dissenso e ser capaz de hierarquizar (e arbitrariamente?) ideias filosóficas.

De fato eu acredito que fazer história da filosofia facilita demais a construção do campo da filosofia de modo que ela possa responder às demandas e expectativas do mundo da universidade e de seu gerenciamento de recursos (avaliação de candidatos para empregos e bolsas).

Isso não significa que história da filosofia” é em si mesmo ruim. Pelo contrário, é impressionante quanto avanço há no campo do comentário do texto” (ou história da filosofia”) no século XX. Basta ver a riqueza das análises que realmente ajudam a se aproximar de textos.

A questão é que quando a instituição e o campo realizam um deslocamento no objeto de análise da referência filosofica” para a referência bibliográfica”, isso torna mais avaliável as análises e as torna mais passíveis de inserção na roda de distribuição de recursos.

O efeito negativo me parece ser que aquelas análises que não são tão facilmente referenciáveis, avaliáveis acabam sendo consideradas menores. O efeito é um empobrecimento do campo pela dificuldade de outras posturas sobreviverem (já que é mais difícil obter recursos).

Isso eu preciso pensar com mais calma, mas não me parece um acaso os colegas analíticos sofrerem tanto com a demanda de responder (muitas vezes a contragosto, por atrapalhá-los) em seus artigos o estado da arte” a ponto de nunca conseguir avançar as discussões que querem tocar.

Se situar no estado da arte é uma forma de referenciar seu trabalho bibliograficamente, aumentar a capacidade de torná-lo avaliável ao localizá-lo num sistema de bibliografias. Talvez isso ajude a entender um pouco(não totalmente) a sobrevivência da filosofia analítica/anglo.

P.s.: isso não é uma crítica à filosofia analítica (que como qualquer tradição tem seus avanços e recuos), mas a um comentário sobre como institucionalmente ela soube se adaptar e sobreviver às demandas da universidade (o que as vezes atrapalha o desenvolvimento de suas ideias).

September 21, 2022

Uma impressão sobre uma singularidade da obra platônica

Pensando nesse texto pois refletindo sobre como Platão me libertou de um desejo de fazer filosofia como uma operação que se organiza a partir de uma continuifade entre o natural e o social, caso em que a tarefa filosófica se torna filosofia da natureza”.

Texto bastante provisório, mas que acho que acabei botando pra jogo aquilo que me parece singular na obra platônica (e que ainda gostaria de desenvolver mais num texto).

Eu entendo o movimento de quem se engaja nisso, eu só não vejo mais a filosofia como uma eterna elaboração de metafísicas” sem fim.

Minha pergunta na filosofia sempre foi que diabos é essa atividade que ao mesmo tempo afeta nossa forma de se situar no mundo sem que necessariamente nos afete como o autor do texto intencionava. Essa distância me parece fundamental, ainda que não saiba pontuar totalmente ainda.

Não se trata de encontrar uma descrição precisa da realidade pois parece improvável de ser o caso. Embora acho que de alguma forma as análises específicas que se absorve de tem um papel relevante na maneira como nos situamos (ou como retiramos certos clichês e opiniões).

Gosto de pensar que o filosófico é justamente essa distância entre a forma como certos textos e ideias batem em nós e acabam nos permitindo estabelecer uma relação menos viciada com o mundo (algo que sempre é preciso fazer e refazer, já que nunca se conquista totalmente).

Tendo a achar que que apesar de não achar que os textos e ideias descrevem” o real, eles ainda assim tem um papel relevante no processo ao ser o caminho pelo qual construímos uma relação mais livre (pois menos atolada de opiniões) com a realidade.

Isso tudo está muito confuso, mas diria que minha conversão ao platonismo tem a ver com a tentativa de conciliar a ideia de uma promoção (socrática) da ignorância que não abra mão de efetivamente aprender e tirar coisas do mundo que nos ajudem a situar nele.

September 13, 2022

Reflexões sobre a política platônica a partir de Ober

Aos poucos conseguindo situar cada vez melhor o conversadorismo político” aristotélico na medida em que leio o Ober. Por outro lado, talvez dê pra definir o projeto platônico na República como: participação no governo não é (ainda) igualdade radical”.

Hipóteses bastante provisórias que tem mais a ver com eu estar ainda me situando e me sentindo a vontade para refletir sobre algumas intuições que ainda não consigo justificar do que elaborações sistematizadas e bem ancoradas.

Um adendo, que preciso sustentar com mais calma: mas suspeito que parte das dificuldades em ver no argumento platônico uma posição antidemocrática chapada (em alguns leitores liberais) é a dificuldade de ver que exteriormente” uma sociedade justa e uma autoritária são parecidas.

Isso é uma adaptação do argumento de O Sofista” que diz que é difícil distinguir o saber da sofística pois essa diferença só pode ser compreendida interiormente (por meio das conexões e ordenações que efetivamente se constrói ao pensar e que não são transmissíveis diretamente).

Assim, sinto que um esforço político orientado por uma ideia do bom corre o risco de ser tomado exteriormente (entre os não envolvidos) como autoritário por evitar tomar como critério para a ação política a opinião de cada um”, que seria o ponto de vista democrático.

A partir disso acho que talvez dê para redescrever a crítica platônica à democracia. O desejo de combater a tirania (que aparenta ser igual a uma sociedade justa) leva a uma solução que age apenas no nível das aparências ao instituir um regime que todos participam.

A questão é que esse regime não é de fato igualitário na prática. Trata-se de uma sociedade em que essa igualdade continua sendo limitada por elementos externos (riqueza, poder, retórica) ainda que em sua forma institucional promova uma aparência de igualitária.

A fonte desse erro estaria na discussão inicial da República sobre como justificar uma sociedade justa. Se você identifica a justiça como ausência de injustiça, você se mantém num nível que está preocupado apenas em negar uma forma. E assim tudo se torna um perigo em potencial.

Essa necessidade de evitar perigos faz com que os arranjos organizativos se ocupem sobretudo de evitar ser confundida” com uma tirania. Dessa forma, fica-se no âmbito das aparências sem que necessariamente as relações sociais reais se tornem justas.

Somente quando se procura justificar a justiça positivamente, é que se pode realmente explorar o que é a justiça sem se deixar dominar por uma lei do menos pior”.

Não é a toa que Sócrates vai insistir que devemos ser justos mesmo quando aparentamos ser justos. O que está em jogo aqui é uma aposta que não quer se submeter a construir uma mera imagem de justiça sem uma igualdade radical real.

September 13, 2022

A dificuldade platônica de dramatizar o pensamento do outro

Um ponto de partida que eu acho fundamental no Platão é a impossibilidade de dramatizar” de maneira simples o pensamento do outro. Eu falo isso pois é bastante comum de acusar o Sócrates de ser o único falante nos diálogos ou de apenas forçar os outros a pensarem como ele.

Eu não acho essa crítica má fé, pelo contrário, acho que ela aponta para uma dificuldade que é central para os diálogos. Se o Platão é o escritor dessas obras, como ele poderia representar nelas o desenvolvimento livre dos pensamentos dos interlocutores para além de seu controle?

Se o Platão simplesmente representasse as outras personagens de modo livre”, como se elas estivessem pensando por conta própria, sem que o Sócrates estivesse induzindo elas, poderia-se dizer que a liberdade delas é ficcional, existe apenas por ordem do autor dos diálogos.

Assim, se, por exemplo, na lição de geometria no Mênon se representasse o escravo descobrindo sozinho”, com ele identificando” sem ajuda do Sócrates cada passo que o leva a solução daquele enigma, seria possível dizer que não há rememoração” ou aprendizado.

Seria possível dizer que o escravo apenas conseguiu descobrir a solução do enigma pois o autor escolheu representar ele dessa forma. Assim, se o escravo não fosse incitado pelo Sócrates, ainda assim não teríamos prova de que há efetivamente um aprendizado naquela situação.

O problema dramático que aparece é: como representar que um pensamento realmente aconteceu em outra pessoa? Repetindo um problema que aparece em O Sofista”: Como diferenciar algo que parece um pensamento com alguém ter efetivamente pensado algo?

Pois de um ponto de vista externo, a impressão que dá é que representar dramaticamente alguém pensando é idêntico a representar alguém que apenas parece que está pensando. Parece haver uma indistinção nesse ponto que torna tudo mais complicado.

No fim das contas é sempre possível dizer que qualquer autonomia do pensamento é na verdade apenas uma decisão do autor que mais afirma que o outro pensa do que faz surgir de fato ali um pensamento.

O que acho que está em jogo aqui é um problema central pro Platão em inúmeros diálogos: o pensamento não é algo que se transmite” como um conteúdo, mas algo que se faz. Dessa forma, representar o pensamento deveria exigir que o pensamento fosse elaborado ao longo dos diálogos.

É por essa razão que eu acho a solução platônica tão elegante. E ao mesmo tempo de certa maneira uma aposta difícil, complicada, que torna o esforço de transmissão de filosofia algo que nem sempre está garantido pois nem sempre as premissas necessárias estão disponíveis.

O que o Platão faz é em alguma medida quebrar a quarta parede” do enquadramento dramático. Quando ele precisa representar alguém pensando (como no caso da lição de geometria) a efetividade dessa representação depende do leitor ser capaz de pensar aquilo que a personagem pensa.

Isso significa que saber se aquilo a personagem está pensando de fato ou se está apenas seguindo cegamente o Sócrates depende do leitor conseguir reconstruir e ordenar as ideias que a personagem em questão estaria representando naquele momento.

No caso da lição de geometria, aquilo que garante que o escravo realmente rememora” a solução não é nenhum efeito retórico ou literário no texto. A coisa se fia na capacidade do leitor ele mesmo ser capaz de compreender o problema e entender as etapas da construção da solução.

Quando o leitor entende o problema — no sentido de conseguir organizar suas partes, diferenciar os elementos relevantes, saber ordenar as etapas que levam à solução — temos uma prova de que o pensamento está presente para além das sugestões de Sócrates ou do escritor Platão.

Dessa forma, a maneira que se lida com a dificuldade de se representar dramaticamente o pensamento é por meio de um estímulo do pensamento no próprio leitor/espectador que mostra a autonomia do pensamento em relação a figura autoral que dramatiza a obra.

September 11, 2022

O caos político na época socrática

Pensando em simplesmente começar a aceitar que a Carta VII é real na medida em que Platão já é ele próprio uma unidade fictícia composta e decomposta ao longo dos séculos segundo o gosto do freguês.

Inclusive algo que tenho pensado esses dias é como minhas leituras (e também a bibliografia sobre Platão e Sócrates que acabei lendo/encontrando ao longo do tempo) parece subdimensionar o caos (dedo no cu e gritaria) que foi a Guerra do Peloponeso.

Sócrates (470a.c. - 399 a.c.) viveu metade de sua vida adulta (dos 39 até os 66) enquanto a guerra do peloponeso corria solta. E quando acabou rolou a tirania dos 30 e alguns anos depois ele foi condenado à morte. Isso deveria ser um elemento mais central nas análises.

Claro que tem gente que menciona isso, que discute, levanta as implicações dessa situação (foi como comecei a reparar), mas sinto que a maior parte das leituras deixa esse elemento passar batido. E sem isso talvez não fique tão visível os traumas que movimentam esse pensamento.


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