March 7, 2023

Sobre a misteriosa relação de Paulo Arantes com a filosofia

Pensando aqui nessa questão do Cian. Acho que existe uma ênfase exagerada em certos ditos do Paulo Arantes quando ele próprio também deixa entrever que sua prática se circunscreve no que ele entende como o que sobra atualmente da filosofia.

Ele comenta em alguns vídeos (e talvez no Fio da meada) que a filosofia como criação de conceito” não existe mais (não existiria desde Kant, apesar de alguns suspiros posteriores). Mas o que importa é que a profissionalização não é um fim do filosófico, mas seu deslocamento.

Esse deslocamento não é contingente. Tem a ver com a forma que uma certa referência vai se perdendo junto com a disseminação do capitalismo (e aí entra sua filosofia da história, sua particular” história do ser mediada pela entrada em cena do trabalho).

Agora, essa perda de referência tem várias fases (a esquerda hegeliana” e a ideologia francesa” são repetições dessa perda, da busca por permanecer na filosofia a partir de uma autonomização desse discurso como resposta à perda de referência.

Essa reação à perda de referência não é, porém, a única. Existem duas outras reações que me parecem fundamentais e que parecem de alguma forma fazer convergir na obra do PA.: entender e sistematizar as obras de quando havia uma referência e investigar a crise da referência.

A primeira remete a um espírito da historiografia francesa, que se converte num esforço pedagógico de munir gerações futuras com o espírito crítico”. O filósofo seria quem que ensina seus alunos (ou seja, repete-se aqui a corrupção socrática fundadora) o que filosofia pode ser.

Há nesse desejo de disseminar o espírito crítico” referências ao Kant, filósofo que consumaria o esvaziamento a referência com seu projeto crítico e à revista Clima e seu desejo de ensinar os jovens a saber pensar criticamente sobre sua realidade.

Como se pode ver, Paulo Arantes faz isso de maneira lapidae. No livro sobre Hegel, mas nas suas análises heterodoxas da tradição dialética, do uspianismo e da ideologia francesa.

Ainda que sejam livros esquisitos, e geralmente não-gueroultianos, delas se desprende o espírito crítico. Além disso, importante lembrar também como PA reafirma inúmeras vezes seu papel (quase uma missão) como professor. Ou seja, nesse ponto ele faz o que sobra aos filósofos.

Outro caminho que sobra aos filósofos, e que parece ser aquele que ele enxerga na tradição (cara a ele — imune ao seu raio crítico ) da teoria crítica (em sentido estrito, frankfurtiano, mas lato, como Marx e herdeiros) seria a investigação da crise dessa referência.

Eu acho que isso é bem filosófico, na medida em que de certa forma o que se descortina é um certo espírito do mundo (e que no Arantes aparece a maneira como as relações sociais determinam a forma das dimensões espaciais e temporais).

Essa preocupação, inclusive, aparece sobretudo na sua filiação à teoria crítica brasileira (Candido, Schwarz e companhia) e no seu apreço pela ideia de matéria brasileira” como objeto do pensamento. Há um problema que demanda ser pensado, entendido.

E ele demanda ser ainda mais pensado na medida em que de alguma forma parece conter um acesso privilegiado ao sentido (espírito?) do mundo. Pra ele (e aqui os dois caminhos se unem) o espírito crítico ajuda a pensar a matéria brasileira que se torna cada vez mais determinante.

A gente vê isso em sua trajetória, a maneira como ele vai da investigação da crise da referência (dos hegelianos de esquerda aos ideólogos franceses) para a busca pela referência da crise (a partir do problema da matéria brasileira e de suas análises dos conflitos sociais).

Não surpreende que nesse processo ele passe a se interessar não apenas pelos filósofos e suas formas de repercurtirem essa crise, mas também pela maneira como a referência da crise é elaborada e posta à luz por inúmeros cientistas sociais.

É por isso que acredito, que apesar de uma chiadeira habitual do Paulo Arantes, ele não só é inequivocamente filósofo, como ele também realiza perfeitamente o próprio conceito que ele dá desse tipo de figura (em sua possibilidade atual).


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