A dificuldade platônica de dramatizar o pensamento do outro
Um ponto de partida que eu acho fundamental no Platão é a impossibilidade de “dramatizar” de maneira simples o pensamento do outro. Eu falo isso pois é bastante comum de acusar o Sócrates de ser o único falante nos diálogos ou de apenas forçar os outros a pensarem como ele.
Eu não acho essa crítica má fé, pelo contrário, acho que ela aponta para uma dificuldade que é central para os diálogos. Se o Platão é o escritor dessas obras, como ele poderia representar nelas o desenvolvimento livre dos pensamentos dos interlocutores para além de seu controle?
Se o Platão simplesmente representasse as outras personagens de modo “livre”, como se elas estivessem pensando por conta própria, sem que o Sócrates estivesse induzindo elas, poderia-se dizer que a liberdade delas é ficcional, existe apenas por ordem do autor dos diálogos.
Assim, se, por exemplo, na lição de geometria no Mênon se representasse o escravo “descobrindo sozinho”, com ele “identificando” sem ajuda do Sócrates cada passo que o leva a solução daquele enigma, seria possível dizer que não há “rememoração” ou aprendizado.
Seria possível dizer que o escravo apenas conseguiu descobrir a solução do enigma pois o autor escolheu representar ele dessa forma. Assim, se o escravo não fosse incitado pelo Sócrates, ainda assim não teríamos prova de que há efetivamente um aprendizado naquela situação.
O problema dramático que aparece é: como representar que um pensamento realmente aconteceu em outra pessoa? Repetindo um problema que aparece em “O Sofista”: Como diferenciar algo que parece um pensamento com alguém ter efetivamente pensado algo?
Pois de um ponto de vista externo, a impressão que dá é que representar dramaticamente alguém pensando é idêntico a representar alguém que apenas parece que está pensando. Parece haver uma indistinção nesse ponto que torna tudo mais complicado.
No fim das contas é sempre possível dizer que qualquer autonomia do pensamento é na verdade apenas uma decisão do autor que mais afirma que o outro pensa do que faz surgir de fato ali um pensamento.
O que acho que está em jogo aqui é um problema central pro Platão em inúmeros diálogos: o pensamento não é algo que se “transmite” como um conteúdo, mas algo que se faz. Dessa forma, representar o pensamento deveria exigir que o pensamento fosse elaborado ao longo dos diálogos.
É por essa razão que eu acho a solução platônica tão elegante. E ao mesmo tempo de certa maneira uma aposta difícil, complicada, que torna o esforço de transmissão de filosofia algo que nem sempre está garantido pois nem sempre as premissas necessárias estão disponíveis.
O que o Platão faz é em alguma medida “quebrar a quarta parede” do enquadramento dramático. Quando ele precisa representar alguém pensando (como no caso da lição de geometria) a efetividade dessa representação depende do leitor ser capaz de pensar aquilo que a personagem pensa.
Isso significa que saber se aquilo a personagem está pensando de fato ou se está apenas seguindo cegamente o Sócrates depende do leitor conseguir reconstruir e ordenar as ideias que a personagem em questão estaria representando naquele momento.
No caso da lição de geometria, aquilo que garante que o escravo realmente “rememora” a solução não é nenhum efeito retórico ou literário no texto. A coisa se fia na capacidade do leitor ele mesmo ser capaz de compreender o problema e entender as etapas da construção da solução.
Quando o leitor entende o problema — no sentido de conseguir organizar suas partes, diferenciar os elementos relevantes, saber ordenar as etapas que levam à solução — temos uma prova de que o pensamento está presente para além das sugestões de Sócrates ou do escritor Platão.
Dessa forma, a maneira que se lida com a dificuldade de se representar dramaticamente o pensamento é por meio de um estímulo do pensamento no próprio leitor/espectador que mostra a autonomia do pensamento em relação a figura autoral que dramatiza a obra.