June 2, 2021

Fiscais de comorbidade e a ausência de confiança

Fiscal de comorbidade é um saco. Por outro lado dá pra entender a frustração. Acho que ela é mais um sintoma de ausência de confiabilidade geral que parece ser ampliação da insegurança produzida pelas as zonas turvas que encobrem graus diferentes de cuidado/restrição.

Claro que tem um fundo em que isso é produzido por um descaso geral, por uma ausência de coletividade que deixa cada um por si tendo que construir seu suporte (variando conforme a nóia, conforme o desejo de escolher estudos/posições que justifiquem suas ideias e assim por diante).

Mas eu acho difícil também que dentro de circuitos locais, entre pessoas que amamos ou nos preocupamos, não se enquadre esse problema também de uma forma moral. Não sei se a exigência de transparência em nível bem local (entre familiares e amigos) é completamente infundada.

Embora pessoalmente eu tenha ainda bastante dificuldade de me situar entre as análises morais e políticas. Pois as políticas explicam os desenvolvimentos sistêmicos, mas se for só isso a gente retira qualquer fiapo de intimidade das nossas relações, que parecem não ter suporte.

June 1, 2021

Duas demandas para obras literárias

A obra de arte literária perfeita para mim (PARA MIM) atende os desejos conflitantes de. Por um lado, quero algo que no consumo me dê um entretenimento feito sob medida para a minha sensbilidade estética burguesa pouco afeita aos experimentalismos.

Por outro, quero que ela tenha uma capacidade de mapear e dispôr a realidade em termos afetivos, existenciais e políticos que me estimula repensar, reenquadrar e transformar minha vida a ponto de que me sinta compelido a me tornar outra pessoa (ainda que bem pouquinho).

May 30, 2021

Sobre uma enésima forma de crueldade acadêmica

Uma coisa que sempre me parece um sinal da falta de senso de realidade’ da academia com a situação é quando tem processos seletivos de bolsa e se pergunta se a pessoa teria interesse em participar do projeto sem bolsa. Como responder a esse tipo de pergunta de modo honesto?

Óbvio que você pode querer, mas sem remuneração da realmente pra esperar que haja uma dedicação como na participação com bolsa? Não é uma seleção apenas pra entrar no projeto, mas pra ter bolsa. Mesmo quando tem interesse é natural que seja diferente a participação.

Por outro lado, o foda é que parece que ao pôr essa pergunta (“você participaria mesmo se não tivesse bolsa?”), mesmo que não seja a intenção, você acaba pressionando a pessoa, deixando ela preocupada de ser mau vista se for honesta e dizer que depende da bolsa.

Mesmo que as pessoas que vão ler aqueles formulários digam não vamos julgar com base nisso, é apenas para saber quem quer participar do projeto mesmo assim”, ao pôr a pergunta assim (e já vi em mil seleções) fica parecendo que só existe uma resposta possível.

A quantidade de trabalho não-pago que estudantes e pesquisadores precarizados [graduandos e pós-graduandos, bolsias ou não] fazem já é brutal. Agora botar a coisa nesses termos é cruel demais. E ainda põe o pesquisador numa posição de exposição e fragilidade tremenda.

É por coisas assim que eu fico meio puto e irritado com certos discursos meritocráticos que circulam na academia. E como muitos colegas comentam, quando se tenta fazer corres ligados ao mundo da pesquisa mas sem a chancela da universidade não deixa de surgir olhares hostis.

May 30, 2021

Diatribe contra o molecular e a micropolítica

Como estou de mau humor (pelo que tenho que fazer hoje) aqui vai uma coisa que me incomoda: o apelo excessivo ao ponto de vista molecular’ ou à dimensão micropolítica” no mais das vezes acaba sendo um retorno para um ponto de individual que se traduz em vigilância moralista.

Claro que esses conceitos são interessantes, podem permitir inteligibilizar uma série de relações. Mas reduzir eles à formas de auto-policiamento’ ou policiamento alheio’ é esvaziá-los de qualquer força e pôr no lugar um ponto de vista que é bem conservador.

Conservador pois mantém intacto o ponto de vista dominante’/‘hegemônico’ que é o de um indivíduo (como se este fosse o centro de todo e qualquer processo). Acho que o gesto interessante ali é justamente deslocar o sujeito desse ponto (o que implica abrir mão de entender’).

Quando digo que é necessário abrir mão de entender’” é que justamente tem certos processos que a resolução ou a capacidade de enxergá-los não se encontra nessa perspectiva individual. Ainda mais que essa perspectiva, como qualquer uma, tem aquilo que ela pode abarcar.

E para conseguir se deslocar dessa perspectiva isso não se faz com um poder da mente. Assim como ela é construída por inúmeros processos, a sua transformação acho que implica também a elaboração de procedimentos cujos resultados nem sempre fazem sentido para o indivíduo inicial.

May 27, 2021

Meritocracia na academia

Algo que nem acho polêmico: a meritocracia na academia é a forma que desigualdades sociais (burguesas ou aristocráticas) se perpetuam na academia. Ainda assim, parece que sob mil procedimentos (peer review é apenas uma deles), esse elemento permanece absolutamente intocado.

Eu acho que isso é algo entranhado demais. Há campos inteiros do conhecimento que acho que involuntariamente acabam apenas justificando teoricamente a manutenção de certos espaços (“em nome da ciência”) que resultam sempre em excluir.

É meio bobo, meio ingênuo, mas acho que uma forma de pensar a pesquisa verdadeiramente comunista deve procurar construir espaços que recusem toda forma de competição em nome de cooperação (não basta apenas cooperar com quem já tá dentro).

É preciso conseguir desatrelar o envolvimento da pesquisa com qualquer forma de avaliação qualitativa competitiva. É óbvio que parece uma loucura isso, pois todas as formas que a gente tem de organizar a pesquisa tendem a depender de algum nível de competição.

Mas eu acho que se a gente sequer tenta experimentar isso, tenta inventar formas de conhecimento que ativamente recusam a reprodução desses critérios de mérito (e as vezes a coisa pode começar por formalismos simples) a gente está evitando o problema.

Também confesso que suspeito bastante de qualquer forma de organização do conhecimento científico que dependa da reprodução de um sistema absolutamente predatório (e que gera desigualdades e sofrimentos psíquicos incalculáveis) e que foi inventado bem recentemente.

May 26, 2021

Educação a partir de Arendt

Acho o ensaio da Hannah Arendt sobre educação esquisito. Acho que tem coisas ali no diagnóstico que não consigo concordar completamente. Mas uma coisa que acho que vale ali é marcar a tarefa do educador como alguém que se abstém de ser ele próprio o local da mudança do mundo.

Isso tem a ver com a maneira como ela diz que o problema da educação é sobre como acolher” o novo num mundo velho. O texto é bem tortuoso (e simples ao mesmo tempo, o que lhe dá sua sofisticação mesmo com leituras esquisitas da realidade), mas isso depende de apresentar o mundo.

A crítica dela é que os educadores, em sua recusa ao mundo velho (justa), acabam também querendo adiantar” o trabalho de crítica a um ponto em que sequer se descreve o mundo velho por temer se associar a ele.

Não consigo ainda sistematizar direito como, mas acho que tem ali uma defesa importante (ainda que esquisita e as vezes fundamentada em diagnósticos meio fora) da preservação do novo” como um espaço que não se pode ocupar ou delimitar previamente com risco de desvirtuá-lo.

Eu penso nisso pois um dos afãs que vejo no campo teórico é de ocupar” o espaço da novidade. Vejo isso em algumas formas de se aproximar do pensamento ameríndio (que do jeito que funcionam acabam parecendo verdadeiras apropriações). Mas não é só aí que vejo problemas.

Acho que no desejo de não se identificar com o mundo que vivemos (justo), corre-se rápido demais para associar qualquer pessoa que se envolve com ele (ou que procura entendê-lo em seus termos) como um perpetuador desse mundo. Claro que tem desse tipo, mas não são todos.

E nesse sentido que acho que fica algo faltando dos dois lados. Por um lado evita-se entender o mundo em que somos inseridos (que não contém todos os problemas, mas que pela sua força acabam sendo determinantes demais de como as coisas funcionam).

Pra fugir disso acaba-se adotando rápido demais o partido da novidade”, como se ocupar seu ponto de vista fosse algo possível (como se bastasse entender suas teses e como se o deslocamento não precisasse ser ativamente construído por mediações). Acho que aí o novo se desfaz.

Acho que ainda tem um outro efeito pior que é achar que a novidade” aparece de forma substantivada. Que o que compõem uma perspectiva nova” é algo imaculado no mundo. Acho que isso é uma besteira imensa. A dificuldade do novo, de lidar com ele, ao meu ver, é sua distribuição.

O que há de novidade varia entre as perspectivas. Algumas vão ser ligadas ao mundo velho por certos pontos enquanto em outros locais são absolutamente novíssimos. Por outro lado, mesmo em coisas muito velhas pode-se encontrar pontos interessantes que apontam outros caminhos.

Eu diria então que uma perspectiva é constituída sempre de combinações desiguais de continuidades e descontinuidades e que o afã de estar do lado certo da história (o lado do ineditismo) acaba gerando espantalhos de ambos os lados que realmente só entravam as conversas.


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