May 24, 2021

Pós-verdade e a alteração do campo de opiniões

As vezes eu me pergunto se os paradigmas como pós-verdade, crise dos especialistas (ou qualquer nome que se circunscreva os eventos) são apenas um efeito de ter se materializado uma rede global em que todos podem exprimir suas opiniões em pé de igualdade.

Antes a falta de conexão limitava a ocasião para aparecerem os desvios de consenso (tornando os desvios meras anomalias). Claro que essa igualdade é ilusória com tudo o que sabemos sobre controle de dados e manipulação do que aparece para nós na internet.

Também suspeito que essa conectividade não conta toda a história. Acho que ela é uma condição mas não razão suficiente pois o tipo de dissenso que aparece tem um caráter específico que suspeito que deve ter a ver com uma perda de referências social anterior a essa expansão.

Mas acho que a corrosão da confiança dificilmente pode ser pensada desconectada das transformações na escala comunicativa num momento em que as formas de integração social pelo trabalho evaporam.

A coleção e o acúmulo de dados, que se fazem em cima de uma série de trabalhos que não são reconhecidos como tal (pelos trabalhadores/usuários e pelas empresas), mas que ainda permitem concentração de capital pelas gigantes do ramo é simultânea à crise de confiança?

May 23, 2021

Os rumos históricos da filosofia no Brasil

Discussão começada a partir de uma postagem de Liam Bright

Essa análise é muito boa (sempre bom ler o Liam para acompanhar um ponto de vista honesto de dentro da metrópole). Fico pensando, no final, no diagnóstico do Paulo Arantes sobre o fato da filosofia aqui no Brasil ter caminhado pra história da filosofia ser algo positivo.

Ele aponta para o aspecto contingente da disciplina que pode-se abrir a partir do ponto de vista do historiador (se eu entendi adequadamente). E concordo, acho que tem algo muito bom nisso (deus sabe que estudar mal e porcamente a história institucional da disciplina me ajudou).

Ainda assim, do jeito que a coisa se desenvolveu no Brasil com a cultura de especialistas, parece que o aspecto libertador do olhar para a história da filosofia (que nos livraria dos modismos) deu ruim. Tentei abordar isso em um texto, mas não desenvolvi bem esse ponto.

É engraçado. Pra mim, o fato da filosofia analítica não ter conseguido penetrar direito no Brasil (e mesmo a filosofia continental, que tem mais força) é um sinal de sucesso. Significa que de alguma forma não se é refém das modas (claro, tem aspectos negativos que vem junto).

Claro, seria bom se o que acontecesse não fosse uma série de feudos compartimentalizados a partir do autor que se domina (para uma lista atualizada dos feudos basta ver os GTs que compõem a ANPOF e olhar quem pertence nos GTs grandes).

O resultado acho que acaba sendo uma espécie de experiência meio asfixiante em que parece que sequer temos um objeto enquanto comunidade acadêmica. Fica parecendo que se o caminho é ser especialista em um filósofo então não tem muita graça estudar filosofia.

E acho que em alguma medida qualquer projeto coletivo de distribuição desses saberes tá bloqueado de um lado pela ausência de ensino no colégio e por outro das pretensões eruditas serem infiltradas/cooptadas por colonialismos/racismos/etc.

No fim das contas também acho que as perspectivas não são boas (e aqui não temos a compensação dos departamentos de filosofia terem mais alunos — embora de fato, sente-se mais interesse). Se há como salvar a filosofia ou se deve-se salva-la é uma questão que deve-se colocar.

A minha posição sobre esse ponto vai ser elaborada num curso que vou oferecer pelo Instituto de Outros Estudos em breve (e que postei a ementa aqui já) mas que se tudo der certo eu consigo transformar em um livrinho que não encontrará casa de publicação.

Eu estou gostando do caminho que está indo, acho que tem uma hipótese razoável para a situação (embora talvez o final acabe ficando otimista demais e não represente uma saída coletiva pros impasses que vou ter reconstruído): link para ementa do curso

O que eu posso dizer é que tem duas coisas que tem me animado recentemente e que acho que talvez podem servir de escape para a atividade — embora não como um deslocamento da disciplina como um todo e sim como pontos de fuga difusos ao longo de todo o campo.

O primeiro é o trabalho coletivo. Isso é algo difícil no contexto de formação atual (sinto que a formação em filosofia no Brasil é muito tributária à imagem do gênio solitário” [atribuam os predicados que vocês devem imaginar]), mas acho que ajuda os envolvidos sairem de si.

Não acho nem que esse trabalho em conjunto precise resultar em textos à quatro/seis mãos (embora seja bom). Mas só trabalhar para criar um campo de inteligibilidade para além da sua não só vai fazer você suar como acaba criando laços entre os envolvidos, um campo comum.

O outro ponto que acho que é algo que motiva é conseguir lastrear os problemas filosóficos que se depara com as condições de seu surgimento. Isso significa se implicar na atividade enquanto alguém que está jogado no mundo (e nos problemas do mundo).

É fácil esse segundo ponto se tornar algo teórico demais. A forma que tenho feito pra lidar com isso recentemente é tentar verificar nas situações e nos problemas que tenho engajado quem é que está puxando ou articulando o caminho que tou seguindo: o problema ou eu mesmo?

Isso é difícil pois o que acho que tá em jogo aqui é você ir de uma situação em que você pensa as referências para uma em que os referentes te obrigam a tomar certos caminhos. E eles te obrigam dependendo dos corres que cê tá envolvido.

No meu caso o que posso falar é que em vez de procurar problemas filosóficos clássicos eu tenho cada vez mais sentido que certos problemas materiais estão me forçando a me pôr questões que jamais pus antes (e aí torna-se mais fácil avaliar as referências que valem o tempo).

May 22, 2021

Um certo platonismo em Derrida

Eu tava escutando o Paulo Arantes mencionando de passagem o Força de Lei do Derrida mais cedo hoje (https://youtube.com/watch?v=B5xBEXdBK6Y&t=4179s) e ao mencionar a indesconstrutibilidade da justiça” fiquei me perguntando se esse é o momento que o platonismo se infiltra no pensamento derridiano.

Na verdade eu até fiquei com vontade de reler o livro (pena que está na minha mãe, acho), pois acho que indesconstrutibilidade” é uma boa palavra pra pensar algumas coisas que penso sobre as ideias platônicos.

Embora no fundo sei que estou apenas postergando uma leitura atenta aos formalismos do Badiou que parecem resolver (de modo a tornar mais claro e apresentar novos problemas) de modo mais eficiente.

A filosofia fica divertida quando você para de se importar com certas coisas e começa a misturar tudo de maneira mais ou menos indiscriminada. O problema é só que esse mais ou menos” pode resultar em grandes baboseiras (versão filosófica dos poemas ruins).

May 21, 2021

Sobre o retorno presencial das universidades

Curioso com o que vai acontecer com o retorno das aulas nas universidades depois do fim da pandemia. Um amigo meu da Australia fala que lá a presença é bem baixa pois por lei é obrigatório que aulas sejam gravadas e disponibilizadas. Me pergunto se algo semelhante pode ocorrer.

Pois ao mesmo tempo que eu concorde com colegas que existe um caráter insubstituível nas vida universitária presencial (em que é difícil separar o que é da aula e o que é da convivência — e falo aqui apenas do que acontece em sala), acho que certas mudanças já estão rolando.

Fico me perguntando se, havendo condições institucionais, que a gravação e disponibilização pode acabar se tornando uma norma (não agora, mas no futuro), o que também acaba transformando aquele espaço que tem como uma das suas forças o fato de que ele é único e singular.

Eu acho que isso é um problema pois tem pontos positivos e negativos. O fato de que as soluções atuais são muito ruins não significa que todo ensino a distância precisa ser ruim (assim como muito do ensino presencial é lixo e finge-se’ que se aprende).

Sinto que tá rolando aquele interregno e que seu desconforto é ainda piorado pelo fato de que as forças que devem mover em direção a uma maior virtualização do ensino” são as piores forças do capital.

May 19, 2021

A patologia da filosofia

Pra mim a patologia da filosofia é ela deixar de ser centrífuga e se tornar centrípeta. Deixar de se tornar uma ferramenta para se situar diante de problemas concretos e se tornar uma discussão infindável sobre si mesma.

É claro que existem razões produtivas para que esse voltar-se para si aconteça. São as situações em que as ferramentas de trabalho são afiadas, em que se procura entender quais as melhores ferramentas, em que situações e o que falta e deve ser desenvolvido diante de problemas.

O problema é que nesse processo não é raro que a filosofia acabe se apaixonando por si mesma, que ela acabe se tornando um eterno se preocupar consigo mesma e acabe se tornando uma disputa para encontrar a melhor ferramenta geral”.

Isso não é um caso apenas de filósofos que desenvolvem sistemas filosóficos amplos e gerais, mas também de quem se ocupa excessivamente de criticar tais sistemas como se eles fossem a casa de todo mal ao aspirar tudo envolver.

Pois nessas acusações que abraçam formas variadas de defesas de irredutibilidades” você raramente vê um engajamento real com os problemas e as realidades com os quais o sistema em questão estava preocupado. É claro que sistemas são limitados, mas sobretudo pelo que os concerne.

O sistema não se resolve com um novo conjunto de paradigmas, mas com uma transformação também daquilo que surge como problema, das relações consideradas. E nesse ponto cabe desenvolver procedimentos concretos para deslocar o ponto de vista em questão e não apenas reclama na web.

Por isso acho que essa disputa pelo sistema melhor (mais puro, mais idôneo) é estúpida. Na verdade me parece um sintoma de falta de assunto, falta de referência, na maior parte das vezes. Nunca houve intenção de se engajar com tal ou tal problema, apenas criticar sem atritos.

Sem contar também a economia (relações de trabalho potencial) que surge na medida em que você posiciona diante dessas disputas entre sistemas. Dependendo da direção da moda, certas posições podem significar mais bolsa, mais dinheiro, possível empregabilidade.

May 17, 2021

Marxismo vulgar e trabalho extenuante

Como está sendo bom passar essa manhã esmigalhando qualquer semblante de humanidade e inteligência no processo de realização das tarefas do dia de um dos meus sete trabalhos [e que eu consiga terminar antes de meio dia para começar a fazer as tarefas dos outros].

Se eu estou cada dia mais marxista vulgar é em parte também, infelizmente, pelo caráter extenuante do tipo de trabalho que eu tenho feito nos últimos meses.

Uma coisa que tem me feito pensar: a sensação (no corpo) de que tem um caráter bastante material (físico) nos atos intelectuais. É algo que o tempo dedicado às pesquisas havia me ensinado em seu aspecto positivo. Recentemente tenho sentido o lado negativo dessa materialidade.

Não o pensamento alegre, tomando forma na sua tentativa de resolver problemas, se permitindo vez ou outra fazer saltos sem lastro suficiente pelo simples prazer de pensar que podem ser retomados depois. É o caráter bem manual do pensamento, estúpido até, em sua repetitividade.

Se eu fosse resumir um pouco alguns trabalhos que faço hoje em dia eu diria que é: um esforço intelectual, que me obriga a construir um simulacro de inteligência a fim de que os outros possam ter um anteparo para realizarem seus atos intelectuais (talvez esses menos sofridos).

Eu digo talvez pois eu suspeito que o contexto em que essa operação se dá (e as relações de trabalho envolvidas de um lado e as expectativas com o mundo do trabalho do outro) não permite também que o diálogo (e por sua vez a inteligência do outro) seja mais que uma simulação.


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