September 27, 2021

Uma leitura bergsoniana da leitura

O Bergson fala umas coisas muito muito bonitas no Matéria e Memória sobre o funcionamento da percepção, de como boa parte do que vemos é em alguma medida recoberto pelo que já percebemos em outros momentos. Ele chega a dizer (se me lembro bem) que só uma pequena parcela é novo”.

Eu não sei qual a validade científica disso, mas sempre lembro disso pra pensar o que fazemos quando lemos (qualquer coisa, mas como sempre estou falando de filosofia). É muito difícil ler sem interpor na leitura tudo o que já se leu. E isso pode ser feito de modo bom ou ruim.

O modo ruim tende a ser o que acontece na média. Não se lê, apenas se observa algumas palavras e se completa o texto com aquilo que já se sabe. Com o que já se absorveu de outros locais. No fim das contas a gente vai tendo uma relação imaginária com o texto.

É por isso que a única coisa que eu tento fazer quando eu leio textos de filosofia é ler as palavras”. Isso não é fácil, inclusive acho que é algo até anti-intuitivo. Eu me vejo querendo pular as palavras (por preguiça, eu sou um preguiçoso). E muitas vezes de fato é só gordura.

Não acho também que isso é algo neutro”. Nem acho que eu deixo de trazer junto outras coisas na hora em que leio as palavras”. Mas acho que ao menos tem mais chances de outras coisas aparecerem quando se dá o trabalho de ler o maior número de palavras nos textos.

E essa chatice e atrito na leitura do texto (o fato de que preciso me forçar a isso, de que isso me deixa mais lento, de que muita coisa que leio não me serve) ao menos pra mim funciona como um critério de que não estou apenas na minha cabeça (pois nem tudo me serve).

September 22, 2021

O papel institucional da literatura secundária em filosofia

Eu tenho a impressão de que o maior golpe na filosofia (pirâmide) é esse desenho institucional que constrange pesquisadores mais novos a citarem literatura secundária (geralmente ok no máximo) para se engajar no estado da arte”.

Isso nem é um problema com literatura secundária, mas com toda uma estrutura que acaba fazendo com que as únicas contribuições possíveis ou as únicas formas de se engajar com o campo são fazendo incrementos”.

E acho que isso até acaba piorando a literatura secundária na média. Já que é menos importante tentar entender alguma questão, algum problema e mais relevante você conseguir se posicionar no campo, citar as referências adequadas e se manter atualizado.

O campo fica ainda mais inflado (somado às demandas de publicação) e se torna cada vez mais difícil realmente contribuir com o campo ou ver o que de fato tá acontecendo (tendo que se encontrar entre os zilhões de papers redundantes — inclusive os seus próprios).

É claro que tem um problema enorme quando alguém vai lá comentar um texto de literatura primária e apenas repete obviedades ou coisas que qualquer olhada no google já te mostra que foram discutidas. Mas talvez o problema não esteja na pessoa que faz esse texto, mas na estrutura?

Talvez as coisas seriam um pouco diferentes se contribuir com o estado da arte” não fosse o único caminho possível para escrever um texto? Se não fosse o reflexo imediato de cada texto escrito? Isso certamente permitiria experiências mais interessantes.

Mas essa estrutura eu sinto que é difícil de mudar pela própria rede que ela beneficia. Afinal, se o estado da arte” se aprofunda, se ele é ampliado, quem ganha são os pesquisadores que são citados (e que muitas vezes são as próprias pessoas que incitam esse tipo de texto).

Deixando um pouco de lado os ganhos epistêmicos” deses tipo de literatura secundária, o que parece é que quem se beneficia dessas estruturas é quem publica artigos, quem tem números de citações” aumentados, quem consegue mais bolsas e financiamentos por conta disso.

E é curioso que estando nessa posição segura, a pessoa inclusive tem liberdade para experimentar, para tentar outras coisas (para ser ensaístico” ou explorar novos campos”).

Quem apenas contribui” com essa rede (sem os ganhos), por outro lado, fica ralando para conseguir publicar alguns artiguinhos, ganhar bolsas (de mestrado, doutorado ou pós-doc), vagas de substituto e assim por diante. É uma situação bastante precária onde não se tem opção.

Quem ainda está construindo” a carreira não tem muito espaço pra escolher outras formas de escrever pois é a partir desses critérios que ele será avaliado.

Essa estrutura me parece sobretudo legitimar a posição profissional de quem tá no topo da cadeia. Claro, a coisa precisa ser melhor elaborada, mas acho que esbocei isso apenas por não achar que é uma estrutura simples de mudar da noite pro dia.

Tem uma coisa circular aí que não tou conseguindo descrever de maneira mais direta. Mas é como se a legitimidade da literatura secundária dependesse da extração do trabalho (e das energias intelectuais e materiais) desses subpesquisadores”.

Pois se as pessoas fizessem outras coisas, se elas elaborassem outros tipos de engajamentos com o texto, talvez não iria inflar tanto as citações, talvez as revistas teriam menos textos, teriam menos notas qualis e assim por diante.

Mas claro, há aí um poder de gestão de recursos (definir quem vai receber bolsas, quem vai passar nas vagas de emprego) que permite esse tipo de controle sobre a pesquisa. E nem acho que seja um tipo de controle consciente”, me parece um reflexo que quer reproduzir a si mesmo.

September 14, 2021

O reformismo conceitual”

Cansativo ser um pacifista teórico (“reformista conceitual”?). Fico sempre querendo conciliar” posições e costumo desgostar de pessoas que conversam de maneira adversarial (que sempre começam conversas a partir de oposições ou querendo demarcar sua distância).

feliz ou infelizmente a tendência que eu tenho é de concordar com qualquer pessoa que fala comigo (desde que a pessoa chegue de boa fé). Isso eu acho no geral bom, já que ajuda bastante a deslocar minha perspectiva e ajuda a ser um pouco menos bitolado.

Claro que não é um concordar vazio”. Acho que é um esforço positivo mesmo de tentar entender os caminhos que me permitiriam concordar com essa pessoa sem também abrir mão de qualquer coisa que pense ou tenha construído antes. Me parece um exercício bom no geral.

Por outro lado se a pessoa é opositiva demais essa tendência e esse exercício acaba me deixando frustrado, já que acho que esse gesto em parte tem a ver com uma aposta de que a outra pessoa também vai de alguma maneira se sentir mais a vontade para ela também se deslocar.

Nesses casos fico apenas sentindo que meu tempo foi gasto. Isso também sinto quando a coisa é muito unilateral. Momentos em que vou conversar com alguém e sinto que funciono como um anteparo qualquer, que não faz a menor diferença se sou eu ou outra pessoa escutando ali.

September 13, 2021

A crise global da filosofia universitária

os caras nos eua tendo que fazer projeto de lei pra obrigar universidades a terem posições a maioria dos profs como vagas fixas e é pra acreditarmos que o sistema não está mundialmente fudido.

Eu acho uma loucura acreditar que tá tudo bem” e achar que é apenas um soluço do sistema. Claro, adoria acreditar que não é (e nem acho que a crise chegue igualmente pra todas as áreas), mas as humanidades eu acho que tão ali na beira do precipício.

Não acho que a gente tem que parar de lutar por financiamento do estado aqui no Brasil. Mas acho que é cada vez mais importantes que a gente comece a usar os espaços da universidade para já ir experimentando outras relações de ensino e aprendizagem que passem longe dela.

Quer dizer: isso é um problema para quem está na universidade. Pra quem está fora acho que simplesmente já é em parte a realidade presente (vê-se isso na galera que tá aí) tentar experimentar com outras formas de realizar a aprendizagem, o ensino e a pesquisa.

E isso é uma merda, pois qualquer tipo de experimento sempre vai parecer aquém” dessa ultra-mega-estrutura de gestão de recursos que são as universidades. Impossível não achar que qualquer experimento é sempre insuficiente, que não subsitui, não está à altura. E não estará.

Acho que inclusive a primeira coisa que é preciso aceitar (agora conseguir aceitar isso é difícil) é que justamente não dá para ser um pesquisador full-time que tem mil publicações e inclusive uma carreira internacionalizada e isso não significa um fracasso.

Isso eu acho que é difícil realizar na prática pois ainda vamos continuar sendo avaliado (fora algumas situações pontuais) a partir desses termos (inclusive deve se intensificar ainda mais, com as vagas minguando). Acho que tem um trabalho conjunto a se fazer nessa direção.

Não acho que isso é uma solução para todos, mas uma coisa que tem me ajudado é perceber o quanto eu construía minha formação e meus movimentos” na carreira de modo a de alguma forma me adequar minimamente a uma imagem do que acredito ser um profissional concursável”.

E isso sempre foi muito difícil pra mim pois por mais que eu goste dessa imagem do profissional (afinal, eu tenho um interesse real no que eu me engajo) eu sempre acabava cedendo mais do que eu gostaria pros meus interesses e me sentia culpado por não me manter firme no caminho.

Isso ficou ainda mais pesado depois que defendi a tese. Sem qualquer vínculo institucional de pesquisa (e sem nunca ter feito laços suficientes nesses espaços — como falei outro dia, eu tenho preguiça dos nichos estabelecidos) eu dificilmente consegui engatar qualquer coisa.

Eu me interessava por algo, começava a montar um projeto que julgava adequado”, conversava com alguns professores mas por inúmeras razões (geralmente trabalho) a coisa desandava e deixava de lado. Quando voltava a ter tempo já estava com outras ideias em mente e outros projetos.

Isso foi algo que tem me deixado muito culpado nos últimos 3 anos (embora de um ano pra cá eu acho que tenho trabalhado essa culpa). Esse tipo de formação e de desenvolvimento da pesquisa poderia ter sido suficiente pra passar em concurso em 2011, mas em 2021 parece improvável.

O resultado é nem ser um profissional concursável (já que existem certos modelos na filosofia que eu posso até me disfraçar de vez em quando, mas me parece cada vez mais difícil — embora continuarei tentando, claro), nem atacar mais diretamente aquilo que me interessava.

Acabei ficando sem concurso e sem também construir uma pesquisa mais consistente (que talvez conseguiria ter uma continuidade maior se não estivesse tão noiado com construir uma imagem de profissional’). Claro, fazia e fez muito sentido isso quando eu fiz, mas agora não sei.

Ultimamente tenho tentado reorientar minhas pesquisas para longe desse modelo (que como disse, é algo que eu tinha, então não é algo que todos tem que lidar). E acho que o que me ajudou a ir nessa direção foi tentar entender um pouco essa dor de ver que aqueles planos sumiram.

Não sei os efeitos disso a longo prazo, mas ao menos tem me dado um pouco mais de ânimo. E ao menos tem me estimulado a tentar outras formas de realizar o desejo de pesquisa (e ver como ele não precisa se dar exclusivamente a partir da carreira universitária).

Isso não significa que não tem sofrimento e nem que não haja dificuldades (claro que tem, a gente se junta pra tentar resolver lidar com isso coletivamente), mas talvez seja possível cultivar espaços em que a gente não encare o que fazemos como mais pobre” mais fraco”.

Enfim, talvez seja possível construir sofrimentos mais interessantes.

September 9, 2021

O esgotamento de certas práticas textuais

Não sei se fico frustrado ou reconfortado com o fato de que as duas práticas que mais me interessam (literatura romanesca e o sistema filosófico), ou que eu tenho mais gosto”, são práticas que me parecem historicamente esgotadas.

Claro que tem coisa nova” acontecendo sempre (Carson, Murnane, Ferrante, Aira), mas sinto que nada disso realmente inaugura algo diferente? E claro, nem é que precise de novidade para ser bom, para ser interessante, para fazer sentido ou para mostrar algo que faz a vida melhor.

Na verdade acho que o que eu gosto do romanesco é que ele parece talhado” às dimensões e à plasticidade cognitivas (minhas). Suficientemente simples para me tocar, mas com uma gama de combinações/recomposições complexas suficiente para me forçar a ampliar a experiência do mundo.

Por isso que eu tava comentando outro dia sobre o Walser me interessar. Tem algo ali que toca meu espírito profundamente burguês e dá um certo sentido pra esse tipo de pertencimento ao mundo (ao apresentar formas de usar essa alma” do jeito que ela é constituída socialmente).

September 7, 2021

Sobre algumas projeções otimistas com o futuro da filosofia institucional

Lembrei desse texto que escrevi semana passada pois tou agora pensando como as duas alternativas mais persistentes parecem ser falsas-alternativas. A primeira é a crença de que uma vez que a esquerda (Lula) volte ao poder mil concursos vão se abrir (resolvendo o déficit atual).

O primeiro problema é que não seria suficiente para dar conta do déficit (ainda preciso fazer as contas na ponta do lápis, mas duvido muito que tenha mais de 20 vagas pra filosofia por ano enquanto se doutoram uns 150 por ano em média (pelo banco de teses da capes).

Isso para não entrar no mérito de uma certa ilusão coletiva que ignorar que essa crise na academia é mundial (todo o sistema acadêmico de humanas nas grandes metrópoles passa por situações parecidas: inclusive meu sonho era ter a precarização dos adjuncts pra chamar de minha).

A outra alternativa também me parece uma cilada pois apenas reproduz o sistema de competitividade do mercado que tem ajudado a deslegitimar a >academia<. Virar uma estrela da internet pode até ser a solução de alguns, mas certamente não é para todos (o problema se mantém).

Então me parece ruim esses dois horizontes que se apresentam: tanto o sonho de que os concursos voltam (que as vezes pessoas mais estabilizadas [not all academics] jogam de isca pra nós pra continuar produzindo nos seus termos), tanto o sonho de estourar” e sobrevoar a crise.

O que fazer diante dessa situação me parece um enorme desafio pois acho que precisa de alguma forma contemplar o todo (bem, eu pelo menos acredito que qualquer saída deve contemplar o todo e não apenas alguns com mérito [para passar nas poucas vagas ou para surfar nas mídias]).

Realmente nesse ponto eu fico bem travado e nervoso pois o horizonte mais provável (se seguimos na mesma marcha) é um desaparecimento desse campo profissional (e do desejo que faz as pessoas permanecerem nele apesar de tudo).

E o desaparecimento não deixa de ser a situação trágica que vivemos agora. As pessoas tendo que trabalhar em mil outras coisas paralelas (as sortudas conseguem continuar trabalhando na área”, mas sempre de forma insatisfatória e em regimes trabalhistas extremamente precários).

Isso não é um problema em si, já que isso nunca impediu as pessoas de fazerem bons trabalhos. O problema é que as expectativas do campo acadêmico permanecem nas alturas (as expectativas gestadas de um momento que havia efetivamente recursos como nunca antes na história?).

Isso só causa frustração pois >dificilmente< vai conduzir a um emprego. Existe algo aqui que não diz respeito aos que tão de fora”, então acho que nem vale comentar (cabe os estabilizados entenderem suas situações, analisarem o que tem à disposição para lidar com a situação).

No que diz respeito aos que estão na margem desse mercado, suspeito que é preciso de alguma forma reconfigurar o que se entende por formação, organizá-la para outros fins, mobilizar essas habilidades cultivadas em direções que não sejam para alimentar a academia. Fácil falar.

Ainda assim eu realmente não consigo ver outra alternativa (já que existe um limite para o quanto se pode disputar o mercado” da internet — ainda mais com eventuais peixes-grandes estabelecidos botando cada vez mais os pés nessa piscininha de plástico que é a filosofia).

O que significa mobilizar essas habilidades para outros fins talvez seja mais uma aposta do que qualquer outra coisa (e uma aposta que pode dar muito errado). É um utopismo insano, mas acho que envolveria ter uma cultura que parasitasse essa estrutura de formação que já existe.

E por isso talvez eu começo a patinar aqui (já tava patinando antes, mas agora tou derrapando bem mais rápido), pois acho que só de uma forma coletiva é que se poderia aguentar a barra que é se descolar das exigências da formação tradicional para apostar em algo diferente.

Na minha cabeça eu tenho pensado em coisas que são ligadas com educação, mas acho isso ainda muito sonhador (ainda mais quando se pensa nos recursos materiais que aparecem na hora de levantar e tocar certos projetos — algo que tenho aprendido recentemente).

Acho que também é se manter preso em uma realidade que talvez não exista mais. Difícil também imaginar em que outros espaços essas habilidades poderiam vingar (mas isso não se faz nem sozinho nem apenas na cabeça, mas experimentando com oturas pessoas), com que outros trabalhos.

Acho que qualquer caminho vai obrigar se abrir mão de algum elemento da auto-imagem de quem vai pra filosofia acaba comprando (mesmo involuntariamente), seja sua relação com o trabalho intelectual, seja a posição autoritária” que o discurso filosófico acaba vendendo.

Qualquer direção a se tomar me parece que a coisa vai ser bem complicada. Mas gostaria de acreditar (por amor ao campo? a prática?) que talvez não seja preciso abrir mão de tudo (desde que a gente consiga de alguma forma reorientar/reinventar o sentido dessa prática).

A única coisa que eu enfatizaria aqui é que eu acho que não faz mais sentido seguir as regras do jogo. As promessas que legitimavam você ter uma certa formação não fazem mais sentido. Afinal, sem vaga (e cada vez menos gente entrando) pra quem vai se dirigir essa produção?

Isso não quer dizer que não se deve ter rigor, disciplina e o escambau, mas talvez isso possa ser dirigido para outras coisas. Enfim, essa thread não deixa de ser também um grande cascudo que eu estou dando em mim mesmo por ter tentado manter os pé em duas canoas.


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