September 22, 2021

O papel institucional da literatura secundária em filosofia

Eu tenho a impressão de que o maior golpe na filosofia (pirâmide) é esse desenho institucional que constrange pesquisadores mais novos a citarem literatura secundária (geralmente ok no máximo) para se engajar no estado da arte”.

Isso nem é um problema com literatura secundária, mas com toda uma estrutura que acaba fazendo com que as únicas contribuições possíveis ou as únicas formas de se engajar com o campo são fazendo incrementos”.

E acho que isso até acaba piorando a literatura secundária na média. Já que é menos importante tentar entender alguma questão, algum problema e mais relevante você conseguir se posicionar no campo, citar as referências adequadas e se manter atualizado.

O campo fica ainda mais inflado (somado às demandas de publicação) e se torna cada vez mais difícil realmente contribuir com o campo ou ver o que de fato tá acontecendo (tendo que se encontrar entre os zilhões de papers redundantes — inclusive os seus próprios).

É claro que tem um problema enorme quando alguém vai lá comentar um texto de literatura primária e apenas repete obviedades ou coisas que qualquer olhada no google já te mostra que foram discutidas. Mas talvez o problema não esteja na pessoa que faz esse texto, mas na estrutura?

Talvez as coisas seriam um pouco diferentes se contribuir com o estado da arte” não fosse o único caminho possível para escrever um texto? Se não fosse o reflexo imediato de cada texto escrito? Isso certamente permitiria experiências mais interessantes.

Mas essa estrutura eu sinto que é difícil de mudar pela própria rede que ela beneficia. Afinal, se o estado da arte” se aprofunda, se ele é ampliado, quem ganha são os pesquisadores que são citados (e que muitas vezes são as próprias pessoas que incitam esse tipo de texto).

Deixando um pouco de lado os ganhos epistêmicos” deses tipo de literatura secundária, o que parece é que quem se beneficia dessas estruturas é quem publica artigos, quem tem números de citações” aumentados, quem consegue mais bolsas e financiamentos por conta disso.

E é curioso que estando nessa posição segura, a pessoa inclusive tem liberdade para experimentar, para tentar outras coisas (para ser ensaístico” ou explorar novos campos”).

Quem apenas contribui” com essa rede (sem os ganhos), por outro lado, fica ralando para conseguir publicar alguns artiguinhos, ganhar bolsas (de mestrado, doutorado ou pós-doc), vagas de substituto e assim por diante. É uma situação bastante precária onde não se tem opção.

Quem ainda está construindo” a carreira não tem muito espaço pra escolher outras formas de escrever pois é a partir desses critérios que ele será avaliado.

Essa estrutura me parece sobretudo legitimar a posição profissional de quem tá no topo da cadeia. Claro, a coisa precisa ser melhor elaborada, mas acho que esbocei isso apenas por não achar que é uma estrutura simples de mudar da noite pro dia.

Tem uma coisa circular aí que não tou conseguindo descrever de maneira mais direta. Mas é como se a legitimidade da literatura secundária dependesse da extração do trabalho (e das energias intelectuais e materiais) desses subpesquisadores”.

Pois se as pessoas fizessem outras coisas, se elas elaborassem outros tipos de engajamentos com o texto, talvez não iria inflar tanto as citações, talvez as revistas teriam menos textos, teriam menos notas qualis e assim por diante.

Mas claro, há aí um poder de gestão de recursos (definir quem vai receber bolsas, quem vai passar nas vagas de emprego) que permite esse tipo de controle sobre a pesquisa. E nem acho que seja um tipo de controle consciente”, me parece um reflexo que quer reproduzir a si mesmo.


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