April 27, 2022
As assimetrias hierárquicas no mercado acadêmico
o que me deixa triste quando surge esse tópico “trabalho” e “estudo” com professores estabelecidos é que raramente você não sai decepcionado com a pessoa (mesmo que haja carinho e mesmo que este se mantenha).
E ainda tem aquelas variações meio crueis de (“eu também tenho amigos x”) que aparece quando a pessoa complementa: “eu também tive que trabalhar muito na minha formação” e tudo bem pode ser que sim mas é sobre isso a questão?
Falando do recorte que concerne meu mundo (de quem tá num curso “voltado” para a academia, como é a filosofia), existe uma crueldade suplementar na maneira como todos os critérios que importam institucionalmente na disputa por empregos tem a ver com tempo disponível.
Ter tempo para ler, anotar (e com paz de espírito de preferência), perder tempo com coisas difíceis (pois leva tempo) e escrever é o que vai acabar sendo usado como régua de mensuração (os concursos selecionam a partir da erudição acumulada e da produção de textos).
Eu não tou dizendo que eu tenho uma solução pra isso, mas é inegável que isso não constitui tudo que é um bom professor ou pesquisador de filosofia. Ainda assim, por razões quaisquer, todas as formas de avaliação acabam sendo dessa forma e assume-se que não há outra forma.
É óbvio que se o que vai ser avaliado é a capacidade de acumular uma erudição (para fazer provas) e escrever textos (para pontuarem seu currículo) que isso vai acabar privilegiando um certo grupo de pessoas (mesmo com um número crescente de ações afirmativas que se faça).
É bem frustrante que qualquer comentário sobre isso seja lido automaticamente como um “pedido de facilitação” ou “diminuição dos critérios”. A falta de capacidade imaginativa institucional realmente é algo que cansa demais.
April 26, 2022
O twitter como a emergência de um comum discursivo
Gosto do twitter pois aqui eu não conseguiria imaginar outra reação das pessoas que aproveitarem esse “evento” que sequer sabemos como vai ser para postarem suas infinitas elegias sobre o acontecimento (seja “lamentando”, “marcando indiferença” ou “comentando os comentários”).
Se existe algum espaço que condensa o desejo de escrever (e não necessariamente todas as formas de escrita), me parece que essa rede é uma boa candidata a isso.
Não interessa aqui nada, interessa apenas “participar do momento” “comentando o momento” (e eu estou fazendo isso aqui também).
Gostaria de fazer intricados grafos mereológicos que mostram como a estrutura discursiva do twitter realmente permite que um “comum” apareça.
April 25, 2022
A pergunta da orientação diante da auto-ininteligibilidade
Uma pergunta que me interessa hoje em dia: O que significa “se orientar no pensamento” se nós somos em boa medida ininteligíveis para nós mesmos?
Não me parece que haja um “olhar interno”, algum tipo de transparência, que nos permita produzir uma coerência interna que nos sirva de ponto de apoio para como agir no mundo.
Também não acho que essa orientação pode se dar simplesmente por meio de uma capacidade de olhar o mundo externamente, já que nossas próprias vidas se caracterizam (quase que imediatamente?) por uma dispersão e fragmentação cognitiva produzida pelas formas de organização social.
Também adicionaria a isso que o próprio pensamento não é algo que é feito à nossa medida. Acho que é o contrário. O sentido que me considero platônico é em alguma medida a aceitação do caráter opaco do próprio pensamento (que aparece em sua opacidade/distância em suas aporias).
É claro que eu tenho minhas suspeitas de que algum tipo de orientação se dá justamente na triangulação dessas três “incapacidades” de compreensão. Mas acho que a essa altura isso não é mais do que uma aposta que seria muito cômoda.
De alguma forma eu estou pensando de maneira bem simplificada que você tem três termos nessa operação. Um sujeito, um pensamento e uma referência (o mundo). Nesse caso a orientação em sua forma mais simples é o pensamento permitir a um sujeito se localizar no mundo.
Desenho da orientação, parte 1
O problema eu acho é que essa primeira imagem é insuficiente pois (apenas desdobrando ela um pouco) o sujeito não é nunca alguém que simplesmente está numa relação de “observar” o mundo. Ele é também uma parte desse mundo (e é por isso determinado em alguma medida por ele).
Desenho da orientação, parte 2
Ainda num nível bastante simplificado, mesmo essa “determinação” poderia (e deveria?) ser desdobrada em dois níveis. Pois somos determinado por restrições sociais que condicionam nossos movimentos, mas também acaba-se determinando o que podemos pensar a partir dessa sociedade.
Desenho da orientação, parte 3
Não acho que o movimento de delimitação do sujeito, do que ele pode pensar, é um movimento “final”. Já que da mesma forma que um sujeito tem uma restrição sobre o que pode pensar, parece também ser uma característica do pensamento uma operação de “crítica”, que se põe em questão.
Desenho da orientação, parte 4
Essa crítica eu entendo muito a partir de uma expressão do Derrida sobre a desconstrução (ou como entendo ela). Não é um sujeito que desconstrói os textos. As obras não são “criticadas” a partir de alguém. O mote derridiano me parece ser que os próprios textos já se desconstroem.
O que isso significa é que em alguma medida não é necessário que um sujeito desconstrua as ideias (ou seja, que ele supere a sua limitação) pois as próprias ideias (e isso me parece algo presente no Platão) já aparecem sempre de maneira não completamente harmonizadas.
Esse caráter “desconstrutivo” do próprio pensamento não deixaria (embora fica aí a questão de qual o gatilho) de afetar os próprios sujeitos (chamo isso de reflexão). Talvez no fato de que mesmo uma delimitação do que um sujeito possa pensar seja sempre ela mesma também vazada.
Desenho da orientação, parte 5
O sujeito é então uma figura “fraturada”. Ele não é alguém que coincide consigo mesmo nem no nível do pensamento, nem no nível de sua determinação social. Pois assim como ele é condicionado, sua fratura também abre um espaço (?) para uma aspiração de outra forma de se organizar.
Desenho da orientação, parte 6
Acho que cabe então marcar que o próprio sujeito sendo fraturado implica que nele próprio a formas conflitantes de ordenar sua própria unidade. Assim, não apenas o pensamento tem um caráter desconstrutivo, mas o sujeito também tem em si a capacidade de ser de outras formas.
Desenho da orientação, parte 7
Essas “diferenças” internas me parece que são uma das fontes que impedem o sujeito de ser totalmente determinado por um tipo de organização social. Acredito que é sua diferença interna que acaba gerando nele um ímpeto “reformador” (ou reordenador) na forma de se situar no mundo.
Assim, ele próprio acabaria criando um dissenso interno à uma determinada maneira de se organizar que acho que traria para a própria organização uma crise. Crise aqui sendo entendido como a disputa entre as diferente formas de se partilhar o comum.
Desenho da orientação, parte 8
Essa possibilidade de crise (que indica acho que a incapacidade de uma forma social se compor como um todo fechado) parece ter dos efeitos imediatos nesse esquema. Em primeiro lugar ela pluraliza os pensamentos expressos. Gera um equívoco no que é pensável (que ecoa no sujeito).
Acho que uma consequência que podemos tirar dessa “pluralização” do que pode ser expresso a partir de uma organização (a partir de seu próprio dissenso interno) é que talvez hajam processos de pensamento que ocorrem ali que não são totalmente inteligíveis ao sujeito.
Se não se trata de uma relação simples e determinada de uma única maneira (uma organização “exprime” a “sua condição”/“verdade”), então talvez seja possível dizer que há diversas “verdades” que competem para se exprimirem. Isso talvez seja o pensamento da organização.
Eu acho que de alguma forma isso acaba implicando que há um campo do que é pensável próprio da forma de organização social, como se houvesse coisas que fossem visíveis ao seu nível (essa intuição eu pego emprestada de um esforço coletivo de pesquisa: https://sum.si/journal-articles/atlas-of-experimental-politics_…)
Desenho da orientação, parte 9
A outra consequência, mais óbvia, é que esse dissenso implica também em processos de transformação do próprio mundo e das referências que compõe ele. Assim, reordenação das formas sociais geram transformações no próprio mundo. Mundo esse que “informa” o pensamento.
Desenho da orientação, parte 10
Olhando esse esquema acho que dá pra dizer duas coisas (três se adicionar o fato de que eu sou doente). Uma diz respeito às cores que usei e outra sobre a necessidade de “completar” o resto do quadro (mais uma vez, talvez eu seja doente).
As cores implicam uma tentativa de ordenar tipos de “relações” diferentes. Amarelo são relações “epistêmicas”; vermelho são relações que “delimitam” (ponto de vista daad passividade); azul são relações que “agem” (atividade); roxo são as auto-relações (passivos e ativas).
Agora quanto ao outro ponto (vou passar mais brevemente pois infelizmente preciso resolver uns corres e não posso voltar pra isso hoje):
1)) o sujeito se localiza nas organizações sociais (ele não apenas faz parte, mas ele também busca entender como faz parte)
Desenho da orientação, parte 11
2)) as organizações sociais não apenas exprimem sua forma no pensamento, mas (talvez seja mais preciso), elas também condicionam o que pode-se pensar a partir de sua institucionalidade (as delimitações e condições onde o pensamento acontece).
3)) por outro lado, também dá pra dizer que a organização “sente” a realidade na medida em que ela também mapeia o mundo a partir de sua situação (o que permite que ela “veja” outras coisas que um “sujeito”).
Algumas pendências aparecem aqui e que gostaria de resolver (em algum momento). Primeiro, esse comentário do @gtupinamba:
Outra coisa. Do jeito que a coisa se organizou, cada conjunto de cores de setas parece “partir” de um elemento. As setas azuis são relações que partem do “pensamento (ideia)”. As vermelhas partem da “referência (mundo)” e as amarelas partem do “sujeito”.
Haveriam relações específicas (e que não estão mapeadas ali) que partem das organizações? Ou isso implica uma especificidade da organização que faça ela aparecer em um lugar distinto dos outros três elementos? Fica essa questão em aberto.
April 21, 2022
O fundo social do problema da divulgação de conhecimento
Esse debate sobre se acadêmico deve “divulgar conhecimento” nas redes ou se ele não deve (ou seja, se ele não tem uma responsabilidade ética) pra mim circula sem mencionar no grande problema que é: boa parte de quem tá indo pra esses espaços está indo pois falta emprego.
Não diria nem: falta emprego na academia; acho que é falta de emprego no geral.
Não tem nem questão de opção. Basta ver as propagandas no ig que são infindáveis e que parecem cada vez mais se aproximar de esquemas de pirâmide (vender cursos com a vibe “vou ensinar vocês a venderem produtos de educação no ig”).
Isso não é um juízo sobre quem mantém uma produção restrita ou quem resolve se arriscar nessa arena pública internética (pera: eu julgo quem vende cursos sobre como vender cursos). Pelo contrário, acho que é uma situação que evidencia uma série de problemas mais gerais.
E essa situação incômoda não aparece no âmbito acadêmico, nas instituições de formação de pesquisadores (ao menos de humanas). Isso não é considerado institucionalmente. Não vejo mudanças na forma de pensar esse processo (mestrado-doutorado) levando em conta a falta de emprego.
April 20, 2022
Como lidar com o obsoleto discurso do “cuidado de si”
Uma pergunta que volta e meia me assombra (fico remoendo na minha cabeça sem conclusões): o que fazer com toda uma tradição de textos ocupados de problemas morais (que adoro, afinal, sou um hadotiano) em um mundo em que não dá espaço para uma realização factível desse “projeto”?
Não quero dizer com isso que os problemas morais são todos partes de um mesmo projeto, mas acho que há de alguma forma um desejo de “auto-melhora” (seja por meio do auto-cuidado ou qualquer variante disso) que passa em boa parte pela “reflexão” de “problemas” e “situações”.
Ainda que muitas vezes o discurso moral ainda siga funcionando (como um conjunto de autores e textos que não cessam de estender e ampliar essa tradição), não acho que suas questões possam ser sustentadas fora do ambiente universitário onde pomos seus efeitos em segundo plano.
Tendo a ficar suspeito dessa capacidade disso que estou chamando de “discurso moral” (e que certamente está sub-definido) a partir da modernidade. Acho que as transformações no mundo político tornam inviável soluções que tendam ao “individual” (mesmo considerando “um político”).
Acho, além disso (e queria escrever sobre isso), que a partir da luz que o Marx joga, o problema da boa vida se torna um pouco vergonhoso quando consideramos a questão da sobrevivência. Não que a vida não seja um problema, mas me parece que as prioridades ficam invertidas.
Quando as condições de decisão sobre “que vida levar” são retiradas ativamente por transformações sociais que excedem os indivíduos, acho que a questão da boa vida se torna parte da pergunta sobre como se organizar para se poder retomar algum nível de liberdade para viver.
Nesse caso, não é que o problema da boa vida suma. Pelo contrário, acho que ele ganha uma concretude diante dos inúmeros constrangimentos sociais que podem ou não tornar nossa movimentação mais ou menos livre.
Além disso, tenho ficado cada vez mais convencido depois do corte freudiano esse tipo de problema não pode mais ser posto da mesma forma. Sei que isso é um terreno disputado, mas mesmo discussões antigas como as sobre acrasia me fazem pensar que certos limites já existiam ali.
No geral fico bastante convencido que um discurso consciente e racionalmente articulado sobre “como viver” (mesmo que fosse possível) não seria muito efetivo. Sim, podemos elaborar o quanto quisermos as nossas disposições morais, infelizmente continuamos agindo desgraçadamente.
Além disso, acho que toda essa tradição que a gente recebe chega aqui no Brasil sempre de uma forma meio “esquisita”, como se não “encaixasse” — a ideia fora do lugar. Ela vem pra cá sabemos como, e se torna nossa por um deslocamento imposto e historicamente construído.
Eu fico achando que por mais que eu aprecie esses textos, que eles me “animem”, muitas vezes eles simplesmente parecem ser direcionados para outro lugar. Em alguma medida eu acho que isso é uma condição da filosofia (esse “endereço errado”), mas ainda assim causa estranhamento.
Não acho também que se trata de simplesmente “olhar para cá” pois se a gente sente esse estranhamento é por de alguma maneira já estar em outro ponto (embora claro, a gente também precisa “institucionalmente” visibilizar certas posições locais que tendem a ser ignoradas).
Certamente essas razões que dei não são exaustivas (e deveriam ser mais justificadas). Mas acho que deixa a gente (ou eu) meio dividido, meio sem saber como lidar com esse corpus estranho (desculpe), já que ele parece fazer sentido em alguma medida, mas não para nós.
Eu acho que o pior caminho a seguir desses impasses é um retorno forçado a essas questões como costumo ver no olavismo. Nem sei se isso está presente no olavo (ou como), mas é algo que vejo em quem orbita no campo de problemas dele e que parece sempre “lamentar” a modernidade.
O caminho que eu tenho tomado (e que acho que tem me guiado, ainda que jamais de maneira sistemática até bem pouco tempo) é questionar as condições que produzem esse impedimento. É em torno disso que tenho tentado pensar o problema da orientação/desorientação.
Acho que a dificuldade de se orientar, ou a facilidade com que somos desorientados (em que as diferenças não fazem diferença) me parece ser um sinal de que algo está ativamente planificando nossa experiência (algo que tenho pensado a partir do Badiou quando ele toca no tema).
April 17, 2022
A miséria institucional da filosofia anglófona
Sempre adoro acompanhar a miséria institucional que é o mundo anglófono filosófico. É gostoso demais tirar os olhos da miséria específica daqui (uma versão periferizada da miséria da instituição filosófica francesa) pra ficar rindo em vez de ficar chorando.
É muito engraçado ver como as pessoas mais bem financiadas em filosofia do planeta não conseguem superar em influência nas esferas não filosóficas os franceses e alemães.
Isso pra mim aparece na forma como há uma recusa institucional enorme a quem não se conforma ou se traduz na gramática hegemônica desse local. É como se não valesse o pensamento que não se desse em termos diferentes.
Aí claro, no fim tudo fica bastante parecido por mais que as diferenças internas sejam enormes. Esse provincianismo seria menos problemático se ele não fosse expansionista e também não quisesse sufocar outras maneiras de pensar (seja exigindo tradução ou impedindo financiamento).