May 7, 2022

Sobre perder respeito

Sinto que uma das coisas ruins de perder respeito por alguém (ou por um grupo de pessoas) é que em alguma medida você também se sente diminuído. Como se sentir essa amargura tivesse um custo também de te fazer sentir parte do que sente pelo outro.

Eu imagino que nem todos se sentem assim, que muitos podem até viver esse momento de maneira plena, como se não precisassem ser sempre pessoas boas (e de fato, ninguém precisa, acho que ser bom não tem a ver com isso). Mas ainda assim sinto pequenas feridas e marcas na alma.

Não falo aqui simplesmente de irritações ocasionais, momentâneas ou temporárias que somem rápido (e que de fato talvez nem deixem sinal). O que falo são aquelas sensações mais intensas, que produzem marcas na medida em que dificultam esquecer que algo já está nos afetando.

E se digo que marcam é porque esses sentimentos (como raiva, ressentimento, frustração, ódio) dependem de pensarmos coisas muito ruins, de remoermos eventos que não podem mudar ou de imaginar (desejando) fins terríveis e sofríveis para quem é alvo de nossos sentimentos.

A gente acaba vivendo em nossas cabeças (mesmo quando temos a ocasião de direcionar esses sentimentos no outro) todos esses cenários. Ocupamos nossa mente e com isso acabamos também sendo isso. Claro que isso não nos torna mals (não acho que é sobre isso), mas acho que dói.

E essa vivência” talvez torne a perda de respeito uma coisa dolorosa (ao menos pra mim — e no caso particular que estou sentindo, nem eram pessoas que tinha respeito antes, elas apenas entraram na minha história como pessoas que não consigo olhar sem um desprezo).

Sinto que acabo sentindo mais uma vez a situação que provocou a perda. Fico apenas olhando e remoendo os fatos, cansado e até meio frustrado por me ver perdendo tempo com isso, como se em alguma medida estivesse nesse ato faltando em respeito comigo ao não deixar isso pra trás.

Não é uma situação que vejo solução. Apenas algo que acho que diminui (ou se anestesia) pela própria incapacidade de ficar aguentando essas dores produzidas por esses sentimentos. E a gente talvez vai passando pra outra” mais por preguiça que por alguma capacidade de superar”.

Mas talvez isso seja até algo mais triste (ainda que menos doloroso), já que parece ser como se uma parte de você (de sua alma, para ser dramático), ficasse ali meio desusada, esquecida, morta, para que você consiga deixar de sentir certas coisas ruins, para que você as ignore.

O consolo me parece ser que essas pequenas mortes dificilmente (quero acreditar) nos exaurem. Como diz Whitman (nos versos mais citado de todos os tempos) I contain multitudes”. De fato, talvez não haja problema que parte da multidão vá se desativando com os encontros que temos.

May 6, 2022

Resmungos sobre a forma do ensaio

Tenho pensado no gênero do ensaio a partir da leitura do Cavell. Talvez deva ser pensado como a libertação de formas reconhecíveis num dado momento (mesmo que eventualmente uma forma específica se naturalize e faça escola no futuro).

Eu ia escrever: o ensaio é um diálogo da alma consigo mesmo. Mas essa o bróder Lukács já mandou.

Volto muito pra esse tema pois a escrita sempre foi pra mim a forma privilegiada de comunicação, interação e expressão (ainda que eu seja também uma pessoa apaixonada pela conversa). Então acho que tem um esforço nesse campo que é experimental em certa medida.

O que acaba acontecendo é que na maior parte das vezes me frustro com o que é tomado como ensaio. Geralmente uma forma fixa e previsível (ou se fala sobre si, fazendo um ensaio pessoal ou se fala sobre livros de outras pessoas, seja em qual gênero for).

Não tenho nada contra esses tipos de texto em si. Mas em termos experimentais, do ponto de vista da exploração de formas de comunicação, interação e expressão jamais me trazem nada de novo, raramente me levam para outros lugares. Na maior parte das vezes só transmitem informação.

E bem, eu sou platonista em certo sentido, não acho que a virtude (entendida aqui como a mensagem de que somos capazes de viver outras vidas) seja transmissível de forma direta. Daí, pra mim, o valor do ensaio. Ele menos me informa e mais me desloca (ao menos no sensível).

Por isso que, de novo, estou gostando de ler o Cavell. Apesar de muito próximo da filosofia, me parece que outra coisa está acontecendo. Sinto ele me conduzindo para lugares que não encontraria sozinho e que me faz repensar como situar as coisas no mundo.

May 4, 2022

A navegação negativa

Acho que existe algo interessante em caminhar rumo a um outro ponto negativamente” (por meio de isso não, nem aquilo”) se não se recai no fetiche de crer que se está indo em direção a algo que não possui forma alguma (ou que não acaba encontrando sua forma no caminhar).

Isso está meio abstrato mas como sempre é sobre a mesma coisa que falo aqui o tempo inteiro: o processo de se encontrar em um mundo em que somos ininteligíveis para nós mesmos. E para isso acho que acaba sendo necessário retraçar esses passos feitos em negativo”.

Não por achar que existe algum caráter mágico” nesse negativo, um inefável que soluciona todos os nossos impasses. Acho que o que falo aqui é mais corriqueiro, uma espécie de esforço de olhar em volta e perceber que mesmo os recuos e desvios apontam para algo singular.

O que não significa também que esse singular seja algo da ordem do plenamente compreensível, de um contorno que conseguimos enxergar vivamente como se finalmente saíssemos da caverna. Trata-se de algo singular por não poder ser qualquer coisa, por não se bastar qualquer desvio.

Acho que a partir desse momento a gente consegue entender um pouco melhor a nossa dificuldade de se orientar. Talvez não seja a falta de um caminho, mas também uma dificuldade quase que natural de abarcar um desejo e uma liberdade que só aparece em seus constrangimentos.

É por isso que acredito cada vez mais que a experimentação com diferentes disciplinas (a criação ativa de constrangimentos, de regras e procedimentos, tão cara aos meus amados Perec, Carson e Aira) é a forma de ao menos tentarmos (na medida do possível) ser livres.

Na medida do possível pois sabemos bem o mundo que vivemos e a distribuição desigual dos constrangimentos externos (e que não raro são massacrantes). Que é muito difícil se pôr nessa esfera positiva quando estamos cansados, exaustos, sugados pelo tanto que há de horrível.

Ainda assim, não acho que hã muita alternativa para esse impasse fora encontrar as disciplinas no caminho que nos ajudem a sofrer menos e viver masi. E claro, isso acho que não se dá sozinho, pois se conseguimos respirar, quando conseguimos, é porque passamos a viver juntos.

Tudo isso de alguma forma me lembra a epígrafe adorniana do livro do Sérgio Ferro. Não vou fingir que entendi ela, então vou apenas deixá-la sem comentários como meu gesto de non finito: A liberdade é o negativo polêmico do sofrimento causado pela opressão social.”

May 3, 2022

Uma defesa dos calhamaços em filosofia

Não deixem o @fabriciopontin atar aquilo que já está morto (vida longa aos calhamaços):

Falando sério (pois acho justa a provocação do Fabricio), acho que ao menos no campo da filosofia inexiste uma preocupação em compreender a nível institucional o que é que está sendo transmitido (e o que queremos que seja transmitido) nesses textos chamados de teses”.

Além do caráter prático (“sem tempo irmão”) e da ausência de um elemento pedagógico (ninguém vai te ensinar nada), acho que a gente não tem ideia do que é que a gente está fazendo com nossos textos, qual a finalidade deles e como isso se relaciona com a realidade do campo.

Claro que existe uma diversidade no que se chama de filosofia que não se pode conter em uma ou duas fórmulas. Mas a gente dificilmente entende para que ou para quem escrevemos. No fim isso explica ainda mais a falta de tempo pra ler, já que a coisa não endereça uma preocupação.

A maior parte das discussões ficam restritas a uns imperativos meio vagos (“devemos estudar o que QUISERMOS ou devemos estudar questões URGENTES) que ou te atendem profissionalmente (te inserem na grande roda da fortuna da bibliografia secundária) ou te deixam falando sozinho.

No fim das contas a escolha acaba sendo entre se inserir no mercado para arranjar um emprego (mas que emprego?) ou ser um lobo solitário que morre sozinho na praia (já que it takes a village to raise a child”).

Nesse contexto acho que faz sentido o desinteresse dos pares. Para quem quer se inserir no mercado é mais do mesmo pois não passa de ser algo que já foi lido em algum momento. Para quem faz algo diferente raramente há uma gramática que conecte o leitor e daí ser tudo alienígina.

Enfim, foda.

Filosofia ainda tem esse problema que a gente está numa crise sobre suas referências desde o final do século XVIII (ainda que a filosofia hegemônica anglófona finja que está tudo bem e que eles falam de coisas”). Mas isso é um problema pro livro que estou tentando escrever.

April 29, 2022

A impressão de esgotamento de um certo tipo de ficção escrita

Uma coisa que fico triste é que sendo alguém mais ligado ao mundo das artes ficcionais escritas” significa que estou em alguma medida ligado a uma forma de arte meio passada”. Já não tem mais ninguém hoje em dia defendendo (sem gerar vergonha) a sua superioridade.

Não é que eu precise de uma justificativa externa, mas de fato parece que outros campos artísticos (música, artes performativas, até o cinema) conseguem, cada um a sua maneira, fazer um caso” razoavelmente bom para a importância dessa prática artística e de sua relevância atual.

A escrita literária ficcional salvo algumas exceções fica ali numa posição meio de representante de um mundo velho (apesar de críticos brilhantes como Jameson, Ngai ainda estarem aí). E claro, acho que isso também transparece numa certa insuficiência da própria prática.

April 28, 2022

A disciplina no estudo

Acho a disciplina do estudo uma coisa bonita sobretudo naqueles dias que você simplesmente não consegue e não quer se concentrar. Claro que tem momentos em que realmente vale mais a pena descansar ou fazer outras coisas ou mesmo se distrair de maneira dispersa.

Quando não existem boas razões para você desviar. Sua mente procurando sarna pra coçar e não encontrando nada que te permita fechar o livro e fazer outra coisa. Eu acho que a força da disciplina entra nesse momento como algo que te libera ao não te exigir investimento.

É como se um hábito consolidado, uma submissão a algo além da sua vontade te torna mais livre para não precisar estar amando o que se faz (algo que de vez em quando é bom, pois em outros momentos voltaremos a amar aquilo — e muitas vezes em momentos propiciados pela disciplina).

Nessas horas, ao superar temporariamente todo esse impulso de desvio, acho que aquilo que se precisa fazer, que se precisa estudar, anotar, prestar atenção, acaba aparecendo de uma forma mais transparente. Como se a falta de vontade de estar ali te fizesse prestar mais atenção.

A disciplina parece produzir um momento difícil de suportar mas que te ajuda a de alguma maneira (pelo puro tédio?) a entrar naquilo que você precisa fazer sem o peso de ter que encontrar ali a expectativa que você deposita tanto em suas paixões.

Claro que isso não é algo confortável, gostoso, cômodo. Parece mais um estado em que estamos ligeiramente desconfortáveis (pois você precisa forçar” permanecer ali). Ainda assim acho que nessas horas a operação de pesquisa ao menos se torna calma e serena.

E é quase como se a ausência de qualquer engajamento mais forte (não queremos estar ali) acabasse nos obrigando a atravessar a superfície dos nossos objetos com ainda mais sensibilidade e abertura (desejando encontrar alguma razão para querer continuar ali).

E significa que vamos encontrar alguma catarse nesse processo? Que essa busca por alguma justificativa para permanecer ali vai se concretizar e se tornar visível? Acho que dificilmente. No mais das vezes acho que apenas saímos com uma sensação cansada” de quem sabe que fez algo.

E sei que talvez isso não seja algo que atraia todos. Mas acho que para mim existe um prazer enorme em ler textos, atravessá-los sem também que grandes descobertas revolucionárias tenham acontecido. Apenas uma leitura plácida, algumas marcações indicadoras ou notas nas páginas.

se eu tivesse fôlego (e erudição, pois sinto que tem algumas coisas que não domino e que deveria investigar) eu diria que existe um esforço poético nessa atividade no sentido de que há um trabalho de produção de algo que se externa de nós nessa operação.

essa disciplina seria o que nos permitiria ter uma relação que nos tira de nós mesmos em alguns momentos (de todas as nossas pressões, expectativas, frustrações) por meio de uma concentração numa atividade curiosamente sem qualquer investimento (pois justamente, não queremos).

E no fim das contas isso eu acho que é uma das virtudes da disciplina. Ela nos torna abertos a ter uma relação com as coisas que não seja pelo envolvimento, pela paixão (algo que é fundamental para simplesmente conseguir seguir existindo e fazendo coisas).

Mas não me parece ser só no campo desse desinvestido’ que a disciplina parece operar. Ela também parece ser aquilo que permite fazermos justamente aquelas coisas que queremos mas que muitas vezes mesmo querendo não conseguimos dar cabo.

Eu acho que isso acontece pois justamente aquelas coisas que queremos nem sempre queremos todas (ou em todos os detalhes). Não tem um desejo que surja que não traga junto com ele também alguma dose de preguiça ou resistência (os compromissos necessários para levá-lo até o fim).

Assim, a disciplina me parece ser aquilo que dá capacidade de aguentar esses vazios de vontade” inevitáveis que existem mesmo dentro daquelas coisas que desejamos com toda a nossa força. Mas não só, pois como falei, acho que a disciplina também tem uma forma de abrir o mundo.

É quase como se essas zonas de tédio” acabassem também sendo a oportunidade de levar os nossos desejos para pontos em que não levaríamos normalmente. Mas isso só podemos saber quando de fato somos confrontado com esses vazios.


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