Como lidar com o obsoleto discurso do “cuidado de si”
Uma pergunta que volta e meia me assombra (fico remoendo na minha cabeça sem conclusões): o que fazer com toda uma tradição de textos ocupados de problemas morais (que adoro, afinal, sou um hadotiano) em um mundo em que não dá espaço para uma realização factível desse “projeto”?
Não quero dizer com isso que os problemas morais são todos partes de um mesmo projeto, mas acho que há de alguma forma um desejo de “auto-melhora” (seja por meio do auto-cuidado ou qualquer variante disso) que passa em boa parte pela “reflexão” de “problemas” e “situações”.
Ainda que muitas vezes o discurso moral ainda siga funcionando (como um conjunto de autores e textos que não cessam de estender e ampliar essa tradição), não acho que suas questões possam ser sustentadas fora do ambiente universitário onde pomos seus efeitos em segundo plano.
Tendo a ficar suspeito dessa capacidade disso que estou chamando de “discurso moral” (e que certamente está sub-definido) a partir da modernidade. Acho que as transformações no mundo político tornam inviável soluções que tendam ao “individual” (mesmo considerando “um político”).
Acho, além disso (e queria escrever sobre isso), que a partir da luz que o Marx joga, o problema da boa vida se torna um pouco vergonhoso quando consideramos a questão da sobrevivência. Não que a vida não seja um problema, mas me parece que as prioridades ficam invertidas.
Quando as condições de decisão sobre “que vida levar” são retiradas ativamente por transformações sociais que excedem os indivíduos, acho que a questão da boa vida se torna parte da pergunta sobre como se organizar para se poder retomar algum nível de liberdade para viver.
Nesse caso, não é que o problema da boa vida suma. Pelo contrário, acho que ele ganha uma concretude diante dos inúmeros constrangimentos sociais que podem ou não tornar nossa movimentação mais ou menos livre.
Além disso, tenho ficado cada vez mais convencido depois do corte freudiano esse tipo de problema não pode mais ser posto da mesma forma. Sei que isso é um terreno disputado, mas mesmo discussões antigas como as sobre acrasia me fazem pensar que certos limites já existiam ali.
No geral fico bastante convencido que um discurso consciente e racionalmente articulado sobre “como viver” (mesmo que fosse possível) não seria muito efetivo. Sim, podemos elaborar o quanto quisermos as nossas disposições morais, infelizmente continuamos agindo desgraçadamente.
Além disso, acho que toda essa tradição que a gente recebe chega aqui no Brasil sempre de uma forma meio “esquisita”, como se não “encaixasse” — a ideia fora do lugar. Ela vem pra cá sabemos como, e se torna nossa por um deslocamento imposto e historicamente construído.
Eu fico achando que por mais que eu aprecie esses textos, que eles me “animem”, muitas vezes eles simplesmente parecem ser direcionados para outro lugar. Em alguma medida eu acho que isso é uma condição da filosofia (esse “endereço errado”), mas ainda assim causa estranhamento.
Não acho também que se trata de simplesmente “olhar para cá” pois se a gente sente esse estranhamento é por de alguma maneira já estar em outro ponto (embora claro, a gente também precisa “institucionalmente” visibilizar certas posições locais que tendem a ser ignoradas).
Certamente essas razões que dei não são exaustivas (e deveriam ser mais justificadas). Mas acho que deixa a gente (ou eu) meio dividido, meio sem saber como lidar com esse corpus estranho (desculpe), já que ele parece fazer sentido em alguma medida, mas não para nós.
Eu acho que o pior caminho a seguir desses impasses é um retorno forçado a essas questões como costumo ver no olavismo. Nem sei se isso está presente no olavo (ou como), mas é algo que vejo em quem orbita no campo de problemas dele e que parece sempre “lamentar” a modernidade.
O caminho que eu tenho tomado (e que acho que tem me guiado, ainda que jamais de maneira sistemática até bem pouco tempo) é questionar as condições que produzem esse impedimento. É em torno disso que tenho tentado pensar o problema da orientação/desorientação.
Acho que a dificuldade de se orientar, ou a facilidade com que somos desorientados (em que as diferenças não fazem diferença) me parece ser um sinal de que algo está ativamente planificando nossa experiência (algo que tenho pensado a partir do Badiou quando ele toca no tema).