A pergunta da orientação diante da auto-ininteligibilidade
Uma pergunta que me interessa hoje em dia: O que significa “se orientar no pensamento” se nós somos em boa medida ininteligíveis para nós mesmos?
Não me parece que haja um “olhar interno”, algum tipo de transparência, que nos permita produzir uma coerência interna que nos sirva de ponto de apoio para como agir no mundo.
Também não acho que essa orientação pode se dar simplesmente por meio de uma capacidade de olhar o mundo externamente, já que nossas próprias vidas se caracterizam (quase que imediatamente?) por uma dispersão e fragmentação cognitiva produzida pelas formas de organização social.
Também adicionaria a isso que o próprio pensamento não é algo que é feito à nossa medida. Acho que é o contrário. O sentido que me considero platônico é em alguma medida a aceitação do caráter opaco do próprio pensamento (que aparece em sua opacidade/distância em suas aporias).
É claro que eu tenho minhas suspeitas de que algum tipo de orientação se dá justamente na triangulação dessas três “incapacidades” de compreensão. Mas acho que a essa altura isso não é mais do que uma aposta que seria muito cômoda.
De alguma forma eu estou pensando de maneira bem simplificada que você tem três termos nessa operação. Um sujeito, um pensamento e uma referência (o mundo). Nesse caso a orientação em sua forma mais simples é o pensamento permitir a um sujeito se localizar no mundo.
O problema eu acho é que essa primeira imagem é insuficiente pois (apenas desdobrando ela um pouco) o sujeito não é nunca alguém que simplesmente está numa relação de “observar” o mundo. Ele é também uma parte desse mundo (e é por isso determinado em alguma medida por ele).
Ainda num nível bastante simplificado, mesmo essa “determinação” poderia (e deveria?) ser desdobrada em dois níveis. Pois somos determinado por restrições sociais que condicionam nossos movimentos, mas também acaba-se determinando o que podemos pensar a partir dessa sociedade.
Não acho que o movimento de delimitação do sujeito, do que ele pode pensar, é um movimento “final”. Já que da mesma forma que um sujeito tem uma restrição sobre o que pode pensar, parece também ser uma característica do pensamento uma operação de “crítica”, que se põe em questão.
Essa crítica eu entendo muito a partir de uma expressão do Derrida sobre a desconstrução (ou como entendo ela). Não é um sujeito que desconstrói os textos. As obras não são “criticadas” a partir de alguém. O mote derridiano me parece ser que os próprios textos já se desconstroem.
O que isso significa é que em alguma medida não é necessário que um sujeito desconstrua as ideias (ou seja, que ele supere a sua limitação) pois as próprias ideias (e isso me parece algo presente no Platão) já aparecem sempre de maneira não completamente harmonizadas.
Esse caráter “desconstrutivo” do próprio pensamento não deixaria (embora fica aí a questão de qual o gatilho) de afetar os próprios sujeitos (chamo isso de reflexão). Talvez no fato de que mesmo uma delimitação do que um sujeito possa pensar seja sempre ela mesma também vazada.
O sujeito é então uma figura “fraturada”. Ele não é alguém que coincide consigo mesmo nem no nível do pensamento, nem no nível de sua determinação social. Pois assim como ele é condicionado, sua fratura também abre um espaço (?) para uma aspiração de outra forma de se organizar.
Acho que cabe então marcar que o próprio sujeito sendo fraturado implica que nele próprio a formas conflitantes de ordenar sua própria unidade. Assim, não apenas o pensamento tem um caráter desconstrutivo, mas o sujeito também tem em si a capacidade de ser de outras formas.
Essas “diferenças” internas me parece que são uma das fontes que impedem o sujeito de ser totalmente determinado por um tipo de organização social. Acredito que é sua diferença interna que acaba gerando nele um ímpeto “reformador” (ou reordenador) na forma de se situar no mundo.
Assim, ele próprio acabaria criando um dissenso interno à uma determinada maneira de se organizar que acho que traria para a própria organização uma crise. Crise aqui sendo entendido como a disputa entre as diferente formas de se partilhar o comum.
Essa possibilidade de crise (que indica acho que a incapacidade de uma forma social se compor como um todo fechado) parece ter dos efeitos imediatos nesse esquema. Em primeiro lugar ela pluraliza os pensamentos expressos. Gera um equívoco no que é pensável (que ecoa no sujeito).
Acho que uma consequência que podemos tirar dessa “pluralização” do que pode ser expresso a partir de uma organização (a partir de seu próprio dissenso interno) é que talvez hajam processos de pensamento que ocorrem ali que não são totalmente inteligíveis ao sujeito.
Se não se trata de uma relação simples e determinada de uma única maneira (uma organização “exprime” a “sua condição”/“verdade”), então talvez seja possível dizer que há diversas “verdades” que competem para se exprimirem. Isso talvez seja o pensamento da organização.
Eu acho que de alguma forma isso acaba implicando que há um campo do que é pensável próprio da forma de organização social, como se houvesse coisas que fossem visíveis ao seu nível (essa intuição eu pego emprestada de um esforço coletivo de pesquisa: https://sum.si/journal-articles/atlas-of-experimental-politics_…)
A outra consequência, mais óbvia, é que esse dissenso implica também em processos de transformação do próprio mundo e das referências que compõe ele. Assim, reordenação das formas sociais geram transformações no próprio mundo. Mundo esse que “informa” o pensamento.
Olhando esse esquema acho que dá pra dizer duas coisas (três se adicionar o fato de que eu sou doente). Uma diz respeito às cores que usei e outra sobre a necessidade de “completar” o resto do quadro (mais uma vez, talvez eu seja doente).
As cores implicam uma tentativa de ordenar tipos de “relações” diferentes. Amarelo são relações “epistêmicas”; vermelho são relações que “delimitam” (ponto de vista daad passividade); azul são relações que “agem” (atividade); roxo são as auto-relações (passivos e ativas).
Agora quanto ao outro ponto (vou passar mais brevemente pois infelizmente preciso resolver uns corres e não posso voltar pra isso hoje):
1)) o sujeito se localiza nas organizações sociais (ele não apenas faz parte, mas ele também busca entender como faz parte)
2)) as organizações sociais não apenas exprimem sua forma no pensamento, mas (talvez seja mais preciso), elas também condicionam o que pode-se pensar a partir de sua institucionalidade (as delimitações e condições onde o pensamento acontece).
3)) por outro lado, também dá pra dizer que a organização “sente” a realidade na medida em que ela também mapeia o mundo a partir de sua situação (o que permite que ela “veja” outras coisas que um “sujeito”).
Algumas pendências aparecem aqui e que gostaria de resolver (em algum momento). Primeiro, esse comentário do @gtupinamba:
Tá ficando muito legal! Agora, o bicho pega na hora que você impõe a todos os elementos desse diagrama que eles sejam homogêneos em algum nível (o que sujeito, pensamento, organização, referência tem em comum que permite que variações em um determinem variações nos outros) eheh
— Gabriel Tupinambá (@gtupinamba) April 25, 2022
Outra coisa. Do jeito que a coisa se organizou, cada conjunto de cores de setas parece “partir” de um elemento. As setas azuis são relações que partem do “pensamento (ideia)”. As vermelhas partem da “referência (mundo)” e as amarelas partem do “sujeito”.
Haveriam relações específicas (e que não estão mapeadas ali) que partem das organizações? Ou isso implica uma especificidade da organização que faça ela aparecer em um lugar distinto dos outros três elementos? Fica essa questão em aberto.