September 13, 2019

Sobre o ecossistema de publicações nacional

O @ababelado falou algo hoje que faz sentido demais e que explica um pouco da minha frustração com o mundo expandido Piauí”. O fato de que o Instituto Serrapilheira investe apenas em ciências naturais talvez não seja apenas para valorizar essa área mais custosa/“produtiva”.

Ele diz que teria aí uma certa divisão de tarefas que acaba excluindo e/ou desvalorizando as ciências humanas e a filosofia em nome dessa forma, no caso deles, mal definida que é o ensaio (caso da Serrote) e/ou o puro e simples jornalismo (caso da Piauí).

Não é pra dizer que são ruins as coisas que se publicam nesses espaços (embora confesso que a Serrote seja cheia de bocejos), mas há uma redução da investigação rigorosa que ocorre na filosofia e nas ciências humanas a uma forma artística mal definida, a uma questão de estilo.

Claro que se pode dizer que eles simplesmente não tem interesse”. Mas de fato casa muito bem com uma postura fortemente cientificista a redução das questões humanas” ao campo artístico, ao campo das ~impressões estilizadas.

Pensando ainda nessa divisão e como ela induz uma banalização de qualquer complexidade das investigações da área de humanas e/ou da filosofia. É como se certas questões estivessem ao alcance de todos imediatamente na medida em que se é um cidadão”.

Como disse o @thomazamancio, é muito cool um físico que lê Montaigne. A gente valoriza isso. Não importa se ele não sabe ler, importa que os signos estejam ali e ele os use corretamente, importa mobilizar uma certa cultura de conversação sem que precise precipitar os sentidos.

O que me leva à thread que o @toujourmicelio fez mais cedo, com o Machado, aquele que entendeu bem esse mundo:

Mas qual a nossa solução pra isso? Dogmatizar as ciências humanas. Se envergonhar do seu caráter mole (sim, a distinção entre ciências duras e ciências moles é hiper-problemática, mas não seria o caso de afirmar e abraçar esse elemento como o espaço do seu valor?)

O rigor precisa ser afirmado sem que a gente precise sacrificar a hesitação. O caráter formal da expressão precisa ser defendido sem que a gente ignore o lastro do elemento expresso (e como o expresso condiciona também a expressão).

Mas pra isso a gente precisa abrir o conceito. Parar de enxergar o uso de conceitos como meros contâineres que uma vez delimitados se tornam imutáveis. Como se a rigidez estivesse na capacidade de usar um conceito com um conteúdo correto”.

Isso é estupidez, dogmatismo. Mas acho que é isso o que acontece. Eu sei que eu repito demais isso, bato muito nessa tecla, mas enquanto a gente abre mão da capacidade de juntar lé com cré a gente tá deixando outras pessoas fazerem isso por nós.

Mas eu entendo. O fato bruto é sedutor. O dogma é forte, a informação é algo (para quem tá nesse jogo, para quem aceita essas regras - óbvio que não falo de galera anti-ciência) que convence demais mesmo quando a gente não sabe como a coisa é produzida (ou justamente por isso?).

Mas no fim das contas essa essencialização da realidade, essa crença da existência de elementos que existem para além de qualquer relação epistêmica (gente mais esperta que eu já chamou isso de o mito do dado’ em um outro contexto) é paralisante pois você se torna dependente.

E é claro que muitas das pessoas das ciências humanas estão cientes do caráter produzido dos seus saberes. De como são coletados, como são produzidos e sintetizados. Mas mesmo com essa problematização ainda se insiste na primazia da experiência (isso é uma discussão mais longa).

E isso, como falei, acredito que nos torna dependentes. Dependente justamente dos dados produzidos. Refém da espera pela aparição dos fatos que corroborem seus valores, suas ideias, seus desejos. E é aí que o bicho quebra, pois o desejo justamente não é da ordem do dado.

Como a Carson (pra não falar do Platão) diz, o desejo (que é em certa medida o que orienta ambições políticas) é sempre de uma certa ordem imaginária, de uma ordem não-atual (poderia dizer também: do movimento). Ora, validar o desejo apenas a partir do concreto não faz sentido.

Eu acho que é um pouco disso que a gente acaba caindo quando foge da redução estetizante das humanidades. Arrisca-se perder a capacidade de entender os elementos não-atuais que servem como reguladores da própria experiência que fornece fatos, que orienta a procura por fatos.

Eu tentei falar um pouco sobre o que acho que pode encaminhar a solução nessa thread aqui, mas ainda acho que tem muita coisa que precisa ser explicitada, desenvolvida, problemas e paradoxos que só vão surgir ao longo do caminho.

A imagem reversa (que em parte é o que parece ser involuntariamente desejado por alguns espíritos anti-filosóficos [anti no sentido negativo, a positivação desse termo deixo para outro momento]) desse desejo é elaborada pela Carson no último capítulo do Eros, the bittersweet”.

September 13, 2019

Alguns comentários sobre Machado de Assis

Eu acho que mais grave da leitura do Machado é o colapso da diferença entre o leitor e o personagem. Por isso gosto da ideia do Paralaxe. Você não consegue ver coisas dependendo do ponto de vista que você ocupa. Do ponto de vista do leitor a história aparece como criação formal.

Do ponto de vista dos personagens os eventos são todos reais, morais. Mais do que a simples confiabilidade do narrador (e confesso, acho esse tema terrivelmente desinteressante), o que tá sendo ignorado é essa variação dos pontos de vista que ocorrem o tempo inteiro.

A obra enquanto algo interessante se produz justamente nessa transição. Acho que por isso o Costa Lima, com razão, insiste na centralidade do problema da mimesis. Não se trata de uma adequação ao real, mas do que acontece com o real quando você leva e não leva a sério a obra.

Tou simplificando e distorce do o LCL, mas quando digo levar a sério estou dizendo, ler como se aquilo que estivesse sendo narrado tem um certo lastro no real (que não precisa ser sempre da mesma forma, como Auerbach demonstra em seu Mimesis). Ou seja, é e não é real.

Quando você colapsa essa distinção e insere tudo no mesmo plano, há dois riscos: Se colapsa para o lado da criação você pode esvaziar a obra de qualquer implicação real. Se tudo é apenas discurso, aquilo não faz a menor diferença na sua vida pois nada está em jogo.

Se você faz como o colega e colapsa para o outro lado, você ignora o caráter complexo da realidade e não é capaz de perceber que a construção formal, as escolhas, os procedimentos selecionam aspectos da realidade que serão postos em destaque.*

*precisaria desenvolver mais isso.

September 10, 2019

A dignidade do problema do amor

Pegando algumas ideias soltas a partir da Carson, do Kittler, eu diria que falar de amor (no contexto platônico) é dar corpo midiáticos aos problemas do tempo e da comunicação.

Em palavras menos chiques: é a materialização desses problemas (tempo e comunicação) em um certo tipo de acontecimento corriqueiro” da vida. Talvez por isso esse tipo de evento (o amor) corriqueiro sempre apareça mais complexo do que é, pelo tipo de problemas graúdos que traz.

Me sinto muito tosco por só estar começando a entender a dignidade filosófica do tema do amor agora. Não que não achasse isso algo importante, mas mesmo olhando a história da filosofia sabe-se que essa questão fora Platão, Agostinho, Stendhal etc não fica no primeiro plano.

Agora, finalmente, acho que a coisa faz sentido. E que ela vai justamente no cruzamento do problema da boa vida com a tentativa de compreender a vida.

Eu vou ler o Fedro, vou ler o Banquete depois de terminar o Teeteto. Talvez até retome as discussões sobre prazer e o bem no Filebo, pois de repente Platão faz muito mais sentido.

Agora tá batendo com delay as razões suplementares (extra-leituras) que condicionam também essa compreensão. O que só confirma a ideia que há uma relação intrínseca entre vida, prática e elaboração conceitual.

September 9, 2019

A filosofia platônica contra o saber reificado

É preciso situar a crítica platônica à escrita no contexto das críticas que Platão faz ao fetiche da filosofia. O problema é o apoio num saber reificado”, algo que também acontece na esfera oral.

O drama é apresentado no Mênon, quando o Sókrates sofre com o Mênon preferindo a definição que depende de uma teoria complexa à definição que parte de premissas mais acessíveis. O fetiche está justamente na sedução que a complexidade gera, a ideia pronta.

Mas não se trata de uma recusa da complexidade por parte Sókrates, mas da incapacidade de construir essa complexidade. O Mênon é refém de uma ideia que ele não consegue reconstruir, da mesma forma que um leitor pode acreditar que da simples leitura ele compreendeu o texto.

Um exemplo contemporâneo: ver um vídeo sobre um assunto e achar que se domina ele. É justamente a imagem do jardim de adonis que Platão critica no Fedro.

September 8, 2019

O elemento erótico-amoroso da história da filosofia

Pensando se a relação da filosofia com sua história não tem a mesma estrutura triangular que a Carson enxerga na estrutura do Eros ( amante : [barreira, que pode ser um outro, o tempo, as circunstâncias] e o amado). O acúmulo de ruído funcionando aí como o entre” do eros.

Pois o ruído que se acumula é doceamargo (pra continuar com a Carson). É ao mesmo tempo o que nos impede de alcançar o objeto visado mas também é aquilo que o constitui como visado. O movimento de atravessar o ruído e filtrá-lo é em parte a graça.

Pensando também em tentar investigar a própria maneira como a Carson faz esse movimento esquisito de atravessar o tempo. Enfim, tomá-la como um caso para iluminar um problema seria um trabalho interessante de fazer. Ainda poderia aproveitar o ~ferramental platônico.

Se a gente leva a sério a Carson e as leituras midiáticas, as investigações platônicas do amor (O banquete e o Fedro), sobre o problema da comunicação, procuram tentar elaborar a natureza dessa distância, o que pode ajudar entender o que significa esse gesto de volta constante.

A relação da filosofia com o seu passado é muito esquisita. O passado não deixa de ser fonte constante de novidade, apesar do texto nunca mudar. Ainda assim, sem os problemas presentes novidade alguma brotaria. É uma tensão que me parece bem carsoniana.

September 7, 2019

O aspecto construtivo da história da filosofia

Essa série do Reza Negarestani (que infelizmente ele largou de mão) era muito boa pois abria espaço para pensar a história da filosofia de modo não-moralista: https://toyphilosophy.com/2018/02/02/toy-philosophy-universes-part-1/

A gente pode conceber os filósofos fazendo sempre modelos, ou seja, tentando dar conta da realidade sem que eles evidentemente consigam dar conta de todos os elementos, mas sempre destacando alguns, deixando outros de lado (seja deixando de lado conscientemente ou não).

Se a gente pensa assim em vários momentos a crítica a um certo filósofo pode ser não um descarte, mas uma tentativa de ampliar e/ou alterar o modelo inicial. Botar outras coisas em destaque, trazer pra dentro novos problemas, novas dinâmicas que tornam necessários novas soluções.

Um exemplo: Kant certamente escreveu um dos livros mais interessantes da história da filosofia, a Crítica da Razão Pura. Mas ainda que esse livro seja genial, tem algo que sempre aparece como um problema, ou seja, a naturalidade das categorias do entendimento. É esquisito.

É claro que o Kant procura justificar brevemente a existência dessas categorias (e a Beatrice Longuenesse, aparentemente, escava isso mais a fundo), mas é inegável que isso incomodou muita gente. A arbitrariedade do número, a maneira como elas se dividem em quatro trios etc.

Acho que tem muitas formas de reagir” a isso. Pode-se acusá-lo de imbecil. Ou pode-se fazer como Schelling, Hegel, Deleuze etc e tentar pensar a própria gênese das categorias. Não precisa largar os elementos férteis de Kant, mas apenas ampliar o modelo a partir do novo problema.


← Newer Entries Older Entries →