September 27, 2019

Sobre críticas vazias feitas na filosofia

A gente precisa pensar em alguns critérios pra poder usar expressões como visão cartesiana/kantiana” sem que seja um golpe vazio no ar. Acho que há sim uma naturalização, capilarização de certos conceitos/ideias/visões-de-mundo de filósofos que passam a compor o senso comum.

O problema é que muitos usos são ataques a uma imagem clichê que sequer se dá o trabalho de diferenciar o texto da vulgata que se espalha. Sim, na maior parte dos casos é a vulgata que ganha o mundo, mas isso não exime de um exame minucioso dessa diferença. Inclusive exige.

Pois só com esse contraste é que, acredito, se pode efetivamente caracterizar a vulgata que consegue se espalhar e que é o que pode ser eficaz. Por exemplo: falar mal do dualismo cartesiano e achar que a solução é bater no Descartes me parece no mínimo mirar no alvo errado.

O foda mesmo (pois exige um esforço de reconstrução) é conseguir demonstrar efetivamente 1) a persistência de certos traços capilarizados em um determinado grupo, 2) que há nesses traços consistência suficiente pra comporem uma imagem e 3) medir a relação entre vulgata e fonte.

September 25, 2019

Sobre a crítica de Platão à escrita

Vou ler a bibliografia ainda (tipo o Derrida), mas a princípio minha leitura da crítica do Platão à escrita no Fedro é apenas que a leitura do texto não substitui o esforço de diálogo da alma consigo mesmo. Ou seja, o texto pode providenciar opiniões corretas mas sem saber.

Pensando aqui como no Mênon a diferença entre saber e opinião correta é justamente a capacidade de, por conta própria, atividade que não pode ser delegada, de conectar as opiniões corretas a partir das suas causas, ou seja, lhes oferecer consistência.

O texto não seria apenas uma brincadeira, um divertimento, mas sim seria uma espécie de parteiro ou gatilho que pode forçar, incentivar, a condução da alma, ou seja, o esforço especulativo de conectar coisas por meio das causas.

Reli algumas passagens e é interessante como se marca o valor do discurso como recordação” para quem sabe. Isso joga pro Mênon de novo, já que lá o conhecimento é rememoração (que pode ser lido, como falei, como esse diálogo da alma consigo mesma fazendo conexões causais.

Mas daria talvez pra retomar também a palinódia do Sócrates e como ele descreve a queda das almas e o seu retorno” na medida que amam, que passa a relembrar a memória da visão bela antes da queda. Será então que um texto bem composto também não poderia agir de tal maneira?

September 25, 2019

O desprezo pela licenciatura em cursos de filosofia

Acho que não devia existir curso de bacharelado de filosofia, história e ciências sociais. Não faz sentido no Brasil esses cursos serem oferecidos SEM a modalidade de licenciatura. Nem entro no mérito da coisa ser feito de modo puxadinho as vezes, mas é ofensivo acho bacharelado.

No caso específico da filosofia o desprezo pela licenciatura e o esforço negativo para integrar licenciatura com as matérias do curso, resistência enorme em pensar junto, é também um imenso ódio a si mesmo, da sua tradição e dos seus hábitos de transmissão.

Claro que podem haver atritos com o pessoal dos departamentos de educação, mas isso não é desculpa suficiente. O modelo 3+1 é triste e é um absurdo que mais presença de filosofia nos colégios não seja prioridade número 1 do setor como um todo.

September 24, 2019

Sobre não poder criticar certas figuras públicas

Quando uma figura é incriticável, quando qualquer tipo de crítica a uma pessoa específica é bloqueado de antemão o que isso quer dizer sobre a situação? Falo isso no caso da Greta pois as vezes sinto que ocorre.

Não tenho nenhuma crítica à Greta e acho que ela é atacada de modo escroto por gente da esquerda e da direita (meu proena é o gretanato). Mas acho que é complicado quando se comenta algo que parece ir contra algo relacionado a ela e vem umas defesas que nem sempre são justas.

Ela ser autista, ser uma criança com depressão não deve servir de resposta a qualquer crítica a ela ou ao movimento no seu entorno (muito menos o mais canalha de todos: mas o que você está fazendo????” geralmente vindo de alguém que não faz nada).

Agora eu tou falando da Greta (foda-se, não quero entrar nessa disputa) mas na verdade o mais interessante é esse tipo de fenômeno que se torna visível a partir do caso dela, que é uma certa blindagem que trava na hora de realizar uma crítica. É um consenso esquisito.

Tem certas figuras, certos temas, que parece que ousar falar contra eles já é ultrapassar um limite. Claro, não quer dizer que as pessoas não passem, inclusive, ser edgy” vem em parte daí, de ultrapassar a linha por ultrapassar (e essas pessoas são cuzonas).

O mais estranho é quando nos vemos diante de uma questão assim e tema assim e instintivamente recuamos em nome de uma inviolabilidade moral. Tem ocasiões em que esse recuo faz sentido, estratégico ou mesmo por ser uma picuinha (afinal, quem nunca encrencou de besteira).

Tem umas que se recua por preguiça, mas tem ainda outras que é um certo temor dos efeitos, de parecer edgy”, de parecer do contra”. E é óbvio que a solução não é ser simplesmente edgy, isso é errado e anula toda a complexidade de qualquer conversa.

Queria apenas apontar um certo tipo de interdição moral que limita a circulação de certos discursos que em outras circunstâncias seriam apenas mais uma crítica razoável mas que diante da interdição (seja lá qual for a origem dela) só aparece na gramática discursiva como edgy.

E quando certas coisas só podem aparecer necessariamente como alguma espécie de desrespeito, de uma violação, eu acho que isso é o sinal de algo problemático.

September 22, 2019

A obsolescência e a filosofia

Uma coisa que eu penso de vez em quando é sobre a persistência do âmbito conceitual de certos desenvolvimentos especulativos APESAR do aparato que condiciona técnico, científico e/ou valorativo dessa obra ter se tornado obsoleto”.

A obra surge num contexto e parece ser validada pelo que é corrente no seu tempo, pela sua capacidade de articular certos conhecimentos empíricos, por sintetizar, por responder a certos valores. Mas e quando isso tudo vai definhando? Quando essas condições acabam ela continua?

É como se com o tempo fosse aparecendo algo que não necessariamente é visível inicialmente, ou seja, seu caráter atemporal”. Esse atemporal não tem que ser pensado, porém, como algo mágico, mas justamente como relativo a um campo em que a passagem do tempo não afeta.

Como algo que a despeito da passagem do tempo continua tendo sentido, continua tendo uma força, uma capacidade de pensar. É só a gente pensar nessa coisa esqusitíssima da filosofia que é autores como Parmênides, Platão, Aristóteles, Spinoza, Hume, Kant etc ainda serem válidos.

Ainda que a gente não entenda o que é exatamente isso (e nossa senhora, acho que isso é espinhoso pra caralho), o estranho é que a gente age dessa forma, a gente entende intuitivamente que não faz sentido alguém falar algo como Platão está desatualizado”, Kant envelheceu”.

Sim, é claro que em certo sentido Platão e Kant não se comunicam com o nosso tempo, com as nossas questões. O esquisito, a doidera, é que em outro sentido (que eu acho que é difícil de entender) eles se comunicam pra caralho.

Eu acho inclusive que esse é um dos sentidos em que a filosofia se quebra e se distingue das outras ciências humanas (acho que inclusive não faz muito sentido, fora uma aliança programática, tomar a filosofia ao lado delas). Pois ela funciona também nesse nível não-temporal.

September 21, 2019

A filosofia como construção de inteligibilidade

Inclusive acho que a graça da filosofia (que a Anne Carson acaba desenvolvendo indiretamente na medida no Eros, the bittersweet”) é esse esforço de construir um comum, construir uma unidade (ainda que provisória, contingente, não exaustiva) que inteligibilize.

Como diz Platão, divisão (das diferenças que fazem sentido) e coleção (das convergências possíveis) como as atividade que descrever a prática filosófica. Daí fazer sentido os grandes inimigos da filosofia: a dóxa, o relativismo e o autoritarismo. Três formas de impedir o jogo.

A dóxa diz: Isso não vale a pena perguntar, examinar. Pra que perder seu tempo com isso? O relativista diz: nenhuma reunião é possível, tudo é absolutamente distinto, pra que, então, continuar? O autoritário diz: Essas distinções estão estão erradas, o sentido só pode ser esse.


← Newer Entries Older Entries →