October 4, 2019

Como lidar com o conhecimento não exaustivo

O difícil é encontrar a medida certa para falar daquilo que você não conhece exaustivamente sem que a única solução possível seja calar a boca.

Eu costumo achar que isso é sempre um exercício que precisa performar no nível da expressão e da investigação a cautela e hesitação. Isso tem sempre o problema de não ser tão assertivo quanto se deseja, mas acho que é um preço a se pagar para evitar dogmatismos.

Acho que meu interesse pelo ensaístico passa um pouco por aí. Não é tanto pela questão do inacabamento (aff) ou mesmo pela incapacidade de se fechar uma posição (aff). O que acho que interessa é misto de caráter tateante/experimental sem que se furte a uma delimitação provisória.

October 2, 2019

Sobre o clima de amizade no Teeteto

Teeteto me parece um dos raros diálogos em que não há hostilidade na discussão de nenhuma das partes.

Isso é prenunciado bem no início do diálogo com essa fala do Sócrates: Será Teodoro, que estou a ser de algum modo indelicado, devido ao gosto que tenho pelas discussões e à vontade que tenho de nos fazer conversar e de nos tornarmos amigos e afáveis uns com os outros?”

Eu acho isso muito bonito. É meu lado cafona. A ideia de que a amizade se faz em torno da conversa e estreita os laços ao conseguir estabelecer um solo comum de sentido. (e sim, acho que isso define bem filosofia e também o porquê - polêmica - acho a ideia de comum importante).

Consigo entender muito os problemas que universais” trazem na medida em que se naturaliza certas tendências particulares como gerais. Isso é ruim. Mas a ideia de que a convergência é algo a priori fracassado e que todo comum é ruim é algo que tenho dificuldade em aceitar.

Por isso gosto muito do esforço do Deleuze em pensar a noção de multiplicidade, que é uma das suas formas de efetuar a fórmula Pluralismo = Monismo”. Também poderia dizer que o conceito é um esforço de síntese sem que essa síntese seja originária (e pelo contrário, não é).

E, por fim, acho que a demonstração performativa dessa ideia, ou seja, da importância da convergência (que não deve ser feita de modo homogeneizante, mas a partir de uma defesa da heterogeneidade) aparece na própria ideia de conversa, no caráter público/social da filosofia.

October 1, 2019

O solo problemático dos conceitos platônicos

Uma coisa que eu gosto no Platão é que o uso da ferramenta conceito” nunca é desconectado de problemas que emergem. Se o pensamento dele é interessante é que o que acaba sendo encenado nos diálogos é uma espécie de atividade mais do que um conjunto de ideias.

É claro que é possível extrair conceitos do seu contexto, mas o que é massa é como qualquer esforço nessa direção (a menos que você apague o caráter dramático dos diálogos) exige que você lide com a necessidade de justificar e readaptar pros seus problemas o que Platão elabora.

September 29, 2019

Comentários sobre o padre de Fleabag

O Padre na segunda temporada de Fleabag enquanto amado é o gatilho sensível para uma série de práticas de cuidado de si que geram uma conversão da protagonista. Se é possível falar em amor platônico nessa série é nesse sentido.

O mundo vai se transformando a partir do momento em que a protagonista começa a se envolver no mundo do padre. Como alguém que está em outro local, outra vida, ela passa a ter o seu campo de atenção expandido. A ascenção do amor não é para um real transcendente, mas imanente.

Como o padre é sua paixão, e ela é atraída pra ele, a aproximação dele, a sensibilização do padre é também a percepção progressiva dos elementos que o compõem (sua moral, sua religiosidade esquisita). Ao prestar atenção nele outras coisas vão ganhando textura.

É nesse sentido que é possível dizer que o amor nos leva para o real. Ele nos leva pois a partir de uma diferença que faz diferença (e que o gozo dessa sensibilidade passa por atravessar essa diferença) somos jogados para outras diferençase depois outras e assim progressivamente.

Torna-se parte ativa do mundo não enquanto pessoa que domina as coisas, mas como alguém que passa a prestar atenção e ganhar esse hábito de modo consistente (mas que nem sempre é definitivo, que precisamos sempre reconstruir dado as tendências homogenizantes/anestesiantes).

É por isso que no final a personagem passa a amar a si mesma. Mesmo que a relação tenha dado ruim, isso importa (pois, afinal, um tipo de diferença sensível foi negado e bloqueado) mas também não importa (pois transcende-se a si própria em direção ás infinitas diferenças reais).

O mundo se torna inteligível não no sentido de dominado, de novo, mas de navegável pois agora, ao menos, prestamos mais atenção ao que nos cerca. Só assim é possível então dizer que se ama a si mesmo, pois percebemos que nós mesmos também somos infinitamente compostos.

September 29, 2019

Algumas misérias sobre a cultura do artigo filosófico

Dilemas da academia: revistas acadêmicas exigem textos rigorosos, que dêem conta de cada passo que dão mas ao mesmo tempo isso é avaliados por pareceristas nem sempre preparados e/ou dispostos a sair de si (esse esquema é repleto de situações de abuso por parte de pareceristas).

Por outro lado raramente esse tipo de texto circula. É assim na filosofia. O gênero artigo não costuma ser atrativo. Não apenas em gente de fora, mas mesmo entre os pares o ato de se ler é raro, salvo se você está num nicho de scholars específuco. Se gasta tinta pra não ser lido.

Ainda poderia falar sobre como a falta de transparência nas avaliações acho que só complica pois parâmetros idiossincráticos rolam soltasos nesse meio. A nossa tendência é inclusive acreditarmos que estamos sempre sendo perseguidos sem nunca sabermos se mandamos mal ou não.

Por outro lado qualquer tipo de publicação fora desses termos é quase sempre irrelevante para a academia, para a valorização do currículo. Diante do tempo finito, a gente é obrigado a abrir mão de espaços diferentes, com seleções diferentes que poderiam gerar textos diferentes.

September 28, 2019

O problema do reconhecimento na recepção de produtos culturais

Tem uns textos de crítica que você lê e só consegue ficar triste quando se toca que aquela tá sendo a leitura standard de um determinado artefato cultural. Uma certa tristeza com uma leitura que você acha mais pobres/empobrecedoras e que parece ser a de geral.

Acho que um dos papeis da crítica é ensinar a ver de outra forma. Não é nada inovador isso, mas fazer isso na prática é dificil. Quando a coisa só consegue se manter no registro do reconhecimento significa ou que nós fracassamos em prestar atenção ou que o objeto visado é pobre.

Inclusive depois da melancolia inicial a coisa me deixa tão ofendida que eu fico pensando que se a obra é pra ser o que foi dito eu acho que ela seria uma merda. O que me consola é que sempre posso rever pra relembrar* (olha o Platão) o que tem de foda no artefato em questão.


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