May 26, 2020

Administradores e burocratas do conceito

Pensando aqui se a gente pode falar de administradores e burocratas do conceito. Um seria o modo virtuoso (o administrador) o outro o modo vicioso (o burocrata). No caso a arte medida é a capacidade de rearranjar conceitos, adaptar à novas situações ou novos problemas.

O administrador faria isso bem, teria um domínio dos problemas implicados e das limitacões do conceito na hora do rearranjo. O burocrata seria aquela pessoa que apenas mete afobadamente (se bem que o burocrata na minha imagem é sempre alguém esgotado) de qualquer jeito.

May 25, 2020

Diotima e o amor como excesso

O discurso da Diotima em que ela descreve a natureza do amor é tão simples quanto bonito. O trecho em que ela descreve o caráter incompleto de eros, nem sábio nem ignorante, nem rico nem pobre, é incrível. Mas tem algo bem foda no fato de que o amante não pode ser um melancólico.

A falta que tem no eros de Diotima é diferente da que tem no de Aristófanes. Enquanto naquele a falta é um ponto de partida constitutivo (daí um mito de origem, a partilha dos tempos míticos), no outro a falta é algo que sempre lhe escapa”. É constitutivo sim, mas como excesso.

Quem viu essa questão do excesso melhor foi a Carson (apesar de, infelizmente, ela não escrever sobre o Banquete). Mas me parece a melhor forma de entender esse amor sem recair em qualquer mitologia individualista.

May 25, 2020

Comentários sobre Agamben e o ensino

Eu resolvi ler a última do Agamben e, por mais que ele tenha falado coisas que eu discorde e coisas que são erradas (inclusive com uma falsa equivalência), me surpreende que esteja sendo ignorado que alguns dos pontos que ele levanta parecem ser relevantes e até bem óbvios.

Nem é pra salvar o Agamben, mas acho que, como ele mesmo reconhece, já tem um empobrecimento da vida acadêmica que faz com que a situação de certa forma caminhe nessa direção (e não deixa de ser cômodo como a destruição dessa experiência venha junto com sua democratização).

Ou seja, parece que é feito sob medida esse gesto por parte de quem realiza essa democratização: vamos expandir e no mesmo gesto que incluímos a gente afasta justamente o que tem de potente nessas instituições. Parece até um gesto consciente de limitar a força emancipatória.

Claro que não funciona completamente, como a gente vê na prática. Mesmo essa especialização e hiper disciplinarização dos cursos universitários não consegue conter o que surge da própria junção de corpos reais numa certa convivência presencial.

O fato de que uma possível transição total pro ambiente remoto apareça como possibilidade real (assim como muitos trabalhos talvez se tornem definitivamente remotos”), é algo que deva de fato nos deixar preocupaods (sem também, deixar de lidar com essa situação emergencial).

May 22, 2020

A sistematicidade de Deleuze

Aparece com frequência a ideia de que o Deleuze não é um filósofo sistemático. Acho isso uma coisa complicada. A gente pode dar três respostas pra isso. A primeira é ver o que ele fala. Tem uma carta que ele se descreve como um metafísico clássico’ e outra que fala de sistemas.

A gente pode também ver o que ele faz com outros filósofos. O livro sobre Nietzsche, Kant e Berson são claramente sistematizações. Deleuze literalmente organiza uma metafísica do ressentimento em Nietzsche a partir da ideia de tipos que Nietzsche elabora na Genealogia.

Por fim a gente pode ver as grandes obras” Deleuzianas. E nesse ponto tem dois elementos. Primeiros, elas são todas bem redondas, todas elas produzem uma espécie de ponto de vista geral (ainda que o que se espera abrir espaço nesse geral é sempre a diferença). Veja o rizoma.

O outro elemento é a extrema proximidade e continuidade que você vê em sua obra. Diferença e Repetição e Mil Platôs, por exemplo (para ficar nas mais sistemáticas) são praticamente os mesmos problemas, os mesmos conceitos. As variações são poucas mas, claro, fazem diferença.

Uma coisa que eu fui percebendo, depois de ver toda a sua obra, é que Deleuze é muito repetitivo. Mas isso não é defeito, se a gente lembra do conceito dele de repetição e do uso esquisito que ele faz do eterno retorno nietzschiano.

May 21, 2020

Uma reflexão importante sobre os problemas do ensino presencial

O problema de uma possível transição emergencial para EAD deveria forçar o corpo docente das universidades a repensarem as práticas de ensino que eles têm. Até para conseguir definir melhor os benefícios do ensino presencial, que na maior parte das vezes são uma geleia geral.

Ensino presencial é muito massa, mas os professores universitários raramente tem uma formação pra isso ou (algo que acho mais importante até) um espaço para reflexão sobre suas práticas de docência. É um misto de experiência sem troca e cada um faz segundo seu gosto.

Não dá pra defender o ensino presencial se 1) a gente não sabe o que ele é ou 2) se sua única forma de unidade é o fato de professor e aluno estarem no mesmo ambiente. O segundo ponto é o começo da investigação de possibilidades, não seu final.

Eu nem acho que a gente precise ter cursos de formação/reciclagem (que podem virar um burocratismo vazio), mas a ideia de você conversar sobre as suas práticas com seus pares e seus alunos (em espaços diferentes e também simultâneos) já seria um avanço enorme.

Infelizmente nos cursos de filosofia a docência ainda é encarado como algo menor, como uma experiência que não dignifica. Os alunos são estorvos, atrasos de vida. O trabalho de formação deles é visto como algo que atrapalha o tempo de pesquisa do professor.

Você democratiza a universidade mas ela continua sendo uma espécie de survival of the fittest”. E sabemos quem tem mais chance de perdurar (Bourdieu das minhas aulas de licenciatura mandou recado).

Inclusive é um sintoma de algo errado que os benefícios do ensino presencial sejam geralmente associados à coisas que acontecem >fora< da sala de aula, ao tipo de socialização que emerge por conta dessa obrigação de se deslocar fisicamente pra um mesmo lugar. Enfim.

May 20, 2020

Um comentário sobre as cigarras do Fedro

Tem outra coisa aqui de interessante no Fedro, ao menos pra mim, ignorante de boa parte do >scholarship<. As cigarras aparecem no interlúdio entre o tema do amor e o tema da escrita (supondo, como algumas pessoas supõem, que a consistência interna do diálogo é meio bamba).

Mas não apenas isso. Eles estão mudando de assunto, comentando sobre o que é bem escrever, e Sócrates diz” Temos alguma necessidade, Fedro, de interrogar a fundo sobre tudo isso (…)?”

Ao que o Fedro responde: Pergunta se temos necessidades? E em vista de que alguém viveria, por assim dizer, se não por prazeres desse tipo?” Sócrates responde a isso falando Há tempo para o ócio, ao que parece.”. Observa então as cigarras e conta um mito de sua origem.

O que tem de interessante nesse mito é (como sublinha Carson) que são seres que decidiram viver no agora” do amor e como presente disso renasceram como animais (cigarra) que passam a vida cantando até morrer, na morte iriam anunciar às musas que honraram em vida com seus cantos.

Entre essas musas honradas, haveria a Calíope, a mais antiga, que é anunciada pelas cigarras que passam o tempo na filosofia. Bem, aí tem algo interessante. Sócrates repara nas cigarras justamente para saber o que elas achariam deles gastarem o tempo discutindo/filosofando.

O que ele fala é que elas julgariam com justiça os homens caso eles apenas sentassem numa árvore confortável e tirassem uma soneca. Conversando, porém, talvez elas dessem aos homens o dom que foi concedido pelos deuses, ou seja, o dom de poder viver integralmente na sua arte.

Aqui, porém, tem algo ambíguo. Pois é óbvio que a vida das cigarras não é plenamente desejável, afinal, viver dessa forma é o que também encurta as suas vidas. A filosofia aparece, portanto, como uma espécie de luxo, um suplemento, mas um suplemento que dignifica a vida.

Ainda que não possamos viver da filosofia (essas já foram as cigarras, que por viverem disso, tem aquele tipo de vida), entrar na filosofia seria o momento em que, de alguma forma, entramos na graça dos deuses, ainda que não possamos suportar de modo contínuo.

A eternidade é, como a própria experiência do amor nas discussões da Carson, uma experiência do eterno a partir do ponto de vista da finitude. Não apenas do que a finitude é capaz de compreender e de entender, mas do que ela é capaz de aguentar.


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