May 20, 2020

Um comentário sobre as cigarras do Fedro

Tem outra coisa aqui de interessante no Fedro, ao menos pra mim, ignorante de boa parte do >scholarship<. As cigarras aparecem no interlúdio entre o tema do amor e o tema da escrita (supondo, como algumas pessoas supõem, que a consistência interna do diálogo é meio bamba).

Mas não apenas isso. Eles estão mudando de assunto, comentando sobre o que é bem escrever, e Sócrates diz” Temos alguma necessidade, Fedro, de interrogar a fundo sobre tudo isso (…)?”

Ao que o Fedro responde: Pergunta se temos necessidades? E em vista de que alguém viveria, por assim dizer, se não por prazeres desse tipo?” Sócrates responde a isso falando Há tempo para o ócio, ao que parece.”. Observa então as cigarras e conta um mito de sua origem.

O que tem de interessante nesse mito é (como sublinha Carson) que são seres que decidiram viver no agora” do amor e como presente disso renasceram como animais (cigarra) que passam a vida cantando até morrer, na morte iriam anunciar às musas que honraram em vida com seus cantos.

Entre essas musas honradas, haveria a Calíope, a mais antiga, que é anunciada pelas cigarras que passam o tempo na filosofia. Bem, aí tem algo interessante. Sócrates repara nas cigarras justamente para saber o que elas achariam deles gastarem o tempo discutindo/filosofando.

O que ele fala é que elas julgariam com justiça os homens caso eles apenas sentassem numa árvore confortável e tirassem uma soneca. Conversando, porém, talvez elas dessem aos homens o dom que foi concedido pelos deuses, ou seja, o dom de poder viver integralmente na sua arte.

Aqui, porém, tem algo ambíguo. Pois é óbvio que a vida das cigarras não é plenamente desejável, afinal, viver dessa forma é o que também encurta as suas vidas. A filosofia aparece, portanto, como uma espécie de luxo, um suplemento, mas um suplemento que dignifica a vida.

Ainda que não possamos viver da filosofia (essas já foram as cigarras, que por viverem disso, tem aquele tipo de vida), entrar na filosofia seria o momento em que, de alguma forma, entramos na graça dos deuses, ainda que não possamos suportar de modo contínuo.

A eternidade é, como a própria experiência do amor nas discussões da Carson, uma experiência do eterno a partir do ponto de vista da finitude. Não apenas do que a finitude é capaz de compreender e de entender, mas do que ela é capaz de aguentar.


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