June 11, 2020

A importância da piedade no pensamento platônico

Lendo As Leis” [que começa com um elogio das constituições cretenses e espartanas, que teriam uma origem divina] eu começo a entender qual o papel que a piedade (e um diálogo como Eutífron) tem no pensamento platônico. Parece ser um pouco a relação política possível” de se ter.

A grande questão Platônica na República é ter um governante que seja capaz de conhecer a ideia de bem, conhecer as coisas em sua natureza, para então poder governar sobre elas adequadamente. Mas se a gente aceita que tem uma certa opacidade com as ideias isso se bloqueia.

Não é possível aspirar a um filósofo rei; algo que fica ainda mais claro pelos diálogos tardios (Parmênides, O Sofista, Filebo). Isso explicaria a mudança de atitude do Platão? O privilégio do campo legislativo? Não sei, mas casa muito bem com a piedade no Críton e no Eutifron.

O Críton é um diálogo curtíssimo (incompleto?) em que Sócrates recusa fugir por respeito às leis. Se a gente não segue o governo, se a gente não aceita os termos da vida social a gente abre mão de tudo. Poderiam acusar o Sócrates de legalista aqui, mas acho que é outra coisa.

Claro que tem muitas situações em que quebrar leis faz sentido, mas acho que ainda assim há um ponto interessante. O que parece estar em jogo é justamente o tipo de dinâmica que se instaura quando acordos sociais são seguidamente violados, o tipo de cultura que isso cria.

Aí que entra o problema da piedade. Pois em As Leis é repetidamente dito (e em O Político com seu mito central), que a melhor forma de vida política é uma em que somos guiados por um ser superior. Daí a relação: Deuses : homens :: Pastores : ovelhas que seria o modelo político.

Vê-se que isso já exclui o filósofo. Só poderiamos ser guiados por algo >>fora desse mundo<<. Claro, em certo sentido a ideia de justiça é essa coisa. Ela é uma ideia que não pertence a nenhum de nós, é de ninguém e de qualquer um. E é nesse ponto que a piedade parece entrar.

Ainda não li As Leis inteira (só os quatro primeiros livros), mas o que parece estar em jogo é que o tipo de relação política que a gente deve estabelecer, e como seria mediada por ideias (como, por exemplo, a ideia do comunismo, de igualdade, ou qualquer outra que te agrade).

Dado a opacidade epistêmica (comprovada repetidamente), parece que a experiência socialmente existente da piedade, as relações de respeito aos deuses, seriam uma espécie de procedimento já existente na sociedade que poderia ser mobilizado para instituir algum tipo de política.

Nessa parte eu ainda estou meio bambo, sem saber o que pensar (daí pensamentos meio desengonçados), mas minha aposta (sobretudo a partir do índice de As Leis) é que o modelo político ideal toma emprestado inúmeras coisas do modelo religioso por conta da relação com algo opaco.

E onde entra o Eutifron? Bem, ele é basicamente uma longa conversa circular em que simplesmente eles não conseguem harmonizar as demandas inconsistentes presentes na relação com os deuses. E bem, isso não impede que a gente seja piedoso, apenas dificulta a nossa reflexão sobre.

Então não é que a piedade, pensar a piedade, resolva as aporias da política, mas se torna um campo em que já estaríamos meio que habituados a circular ENTRE essas aporias, entre uma inconsistência constitutiva? Enfim, agora talvez eu esteja VIAJANDO. Mas queria anotar aqui.

June 10, 2020

Sobre se sentir incapaz

É muito ruim se sentir incapaz. Uma espécie de sensação de fraqueza na alma. A ansiedade meio que tomando conta e a dúvida sobre cada passo que se dá. O pior de tudo nem é só se sentir inseguro, mas que isso, a partir de certo ponto, cansa o corpo do tanto que te tensiona.

Claro, eu leio filosofia em parte pra aprender a lidar com isso, pra aprender a performar não apenas a virtude, mas a tranquilidade e a serenidade, que precisam ser fingidas para se tornarem hábitos.

Nada disso é, porém, uma conquista definitiva, como Aristóteles já dizia.

O pior é que eu até consigo engatar’ coisas. Mas aí acho que tudo isso aparece justamente nos intervalos de dispersão. Consigo trabalhar um pouco, me concentro, mas em vez de descansar 5 minutos, quando vejo se passaram 40 e já fudeu tudo.

June 7, 2020

Comentários a partir da demanda de sua avó entende sua tese?”

Não vou nem entrar no mérito da falsa oposição entre linguagem técnica e linguagem vulgarizante (de divulgação).

Mas a questão das teses não serem explicáveis para avós” me parece ser menos uma falta de inteligibilidade e mais uma falta de clareza das implicações existenciais.

Ficou corrido esse final por causa do limite de caracteres, mas falo de uma certa burocratização do campo do saber que é até certo ponto inevitável dado as condições atuais. O problema é que a gente não se envolve nesses campos também sem se envolver de certa forma.

O dilema é que eu acho que a relação apaixonada” acaba meio que sendo recalcada no campo de saber, por mais que esteja ali, o que implica que nós não temos um espaço pra trabalhar o nosso próprio afeto com relação ao que pesquisamos.

[ok, acho que viajei, mas enfim]

Isso tudo pra dizer: se essa questão sempre volta (por mais cansativa que seja), talvez seja questão entender o porquê dela voltar. E acho que a verdade desse questionamento (por mais que se formule de modo a apresentar alternativas equivocadas) passa por essa alienação.

último ponto (levantado um pouco pela questão que o @galdino_bot trouxe):

  1. A sua avó quer saber o que você estuda?
  2. ) E caso ela queira, ela se esforçou pra isso? Tentou entrar no seu mundo [ou construir um comum?], pois senão fica difícil.

[e de novo, o problema existencial]

June 1, 2020

Como compreender a ascenção do amor” em O Banquete?

Uma das questões pra mim ao ler O Banquete é tentar entender como a ascenção do amor” que a Diotima descreve não precisa ser entendida como um 1) desprezo do corpo e 2) uma anulação da própria experiência do amor. Acho que isso é difícil, pois parece bem firme ali isso.

Mas tem algumas formas de tentar, eu acho, resvalar pra fora disso. Primeiro que é preciso lembrar que não é o final do Banquete. Mesmo que a gente achasse que ela seja Platão, tem que lembrar que depois o Alcebíades aterra completamente o discurso ao fazer o elogio de Sócrates.

Também acho que é preciso ler essa subida como algo que não anule os passos precedentes, como se a subida na escada não implicasse em jogar ela fora, digamos. Ainda mais que a contemplação perfeita não é fácil para todos (daí o caráter iniciático).

Inclusive Sócrates inverte a natureza dos mistérios, pois ele, que não tem nenhum conteúdo, é justamente quem trata essas questões em público, abertamente, que revela o caminho pro amor. [mas enfim, essa é uma área que não me arrisco a comentar muito por saber pouco]

Mas fora esse elemento, acho que cabe destacar que o no segundo passo, quando ela fala sobre amar mais de um corpo, ela diz que se deve rejeitar um amor violento de um só. Ora, esse é justamente o amor também criticado no Fedro por Sócrates no primeiro discurso.

O que se critica não é tanto o caráter louco do amor, nem o caráter de ele estar ligado a uma pessoa (estou entortando d+ Platão aqui?), mas de não enxergar que o elemento erótico/divino é aquilo que excede o amado, ainda que seja por meio dele que experimentamos o amor.

No final do discurso a Diotima marca justamente que o Belo não produz contemplação inerte ou letárgica, pelo contrário. Isso seria o caso do que seria ilusoriamente belo. Também não aconteceria de se achar a vida vã. Pelo contrário, a experiência do belo é o que engaja na ação.

May 27, 2020

O amor platônico como transmissão

206b-209e do Banquete é absolutamente uma doidera dificílima de compreender mas absolutamente central. Eu tenho muita dificuldade, é muito opaco, mas parece que o que tá em jogo é a própria realidade como uma dinâmica de perpetuação a partir da aparição do novo.

O amor é a transmissão do bem e do belo; ao mesmo tempo é a forma do mortal participar da imortalidade; o zelo com seus rebentos (suas obras) é motivado por esse desejo de imortalidade. Mas se amor é a carência, o desejo de ter consigo (sempre) o belo, isto é feito pela atenção?

Você lê O Banquete, faz um puta esforço de valorizar cada discurso, de achar coisas incríveis, de perceber que todos eles tem seu valor, todos são fodas. Mas aí chega o discurso da Diotima.

May 26, 2020

Circuitos locais de saber

Uma coisa que eu acabo pensando sempre — mas com frequência aparece marginalmente, meio que um resíduo que aparece de algumas reflexões — é que a valorização de circuitos locais de saber é muito importante. A coisa está muito confusa ainda como seria, é mais problema que solução.

Ela fica mais clara se penso em termos artísticos. Por exemplo, acho que faz muito sentido, num circuito pequeno, que produções artísticas de pessoas do seu círculo (restrito ou ampliado) circulem tanto ou até mais que obras externas mas que são mais bem avaliadas’.

É como se, independente da capacidade técnica, elas compensassem qualquer falta de >maestria< [embora nem sempre falte maestria, a ideia de uma maestria abstrata talvez seja o problema] pelo fato de que elas fazem sentido para aquela comunidade.

Em alguma medida eu vejo, de longe (pois imbecil como fui atrás muito pouco) os pontos de cultura como funcionando um pouco nessa lógica (por favor me corrijam), de que mais vale o fomento à produção local do que a importação de coisas que talvez não façam sentido ali.

O que não quer dizer que não haja troca entre comunidades, que isso não tem seu mérito etc. Falo apenas no sentido de um esforço que se opõe a uma falsa hegemonia chancelada por uma comunidade local que se posa de universal (pra usar termos bem caricatural: “os críticos”“).

A coisa que tenho me perguntado é, portanto, o que seria isso no campo do saber? Acho que dá pra vislumbrar um pouco isso em circuitos religiosos, mas ainda não parece exatamente isso (o porquê é algo que teria que explorar). Enfim, QUESTÃES.


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