September 9, 2020

A dissincronia entre pensar e entender

Uma coisa que é desagradável na leitura é quando você lê algo e você sente que existe algum entendimento acontecendo ao longo da leitura, apenas não é o seu entendimento. É como se apesar de ser você quem lê quem entende ali é outro (ou seja, para você aparece apenas [há algo]).

O inverso disso, talvez a boa leitura, seria aquela em que o conceito se lê a si mesmo, se desenvolve de maneira impessoal, mas quem compreende e entende esse movimento é você. Ou seja, o sujeito em questão é o conceito e você apenas é o receptáculo da compreensão.

Nesse caso o conceito não se fecha. Ele permanece em aberto e talvez essa seja uma das explicações para a tal da >inesgotabilidade< de certos temas. Inesgotáveis pois leitura e compreensão estariam distanciados, ocorrendo em dois elementos diferentes.

September 8, 2020

A importância do distanciamento irônico diante de doutrinas filosóficas

Tou lendo um texto aqui e percebendo que o problema desse texto é que não tem um distanciamento irônico entre a reconstrução dos argumentos históricos no texto e a posição do autor. É como se o autor que está fazendo essa reconstrução >acreditasse< no texto de modo imediato.

Isso talvez ficou confuso, mas é como se eu lesse Platão e achasse que a validade dos seus argumentos não precisassem de nenhuma mediação/intervenção/deturpração minha. Como se eu achasse que a eternidade da alma foi efetivamente provada no Fédon e que não precisasse mudar nada.

E tudo bem que na hora de mediar/intervir/deturpar a gente precise agir como se não estivesse fazendo isso para conseguir fazer isso. Mas o problema é quando você efetivamente lê sem mediar/intervir/deturpar.

Eu acho que isso é importante pois essa inevitabilidade da mediação/intervenção/deturpação, ou seja, esse distanciamento da letra do texto é o que possibilita (ao meu ver) afirmar sua existência enquanto espírito, ou seja, enquanto ideia/conceito que transcende essa encarnação.

Quando digo isso quero simplesmente dizer que há uma sobrevida das ideias com relação aos textos. Elas não se limitam aos textos e quando a gente transforma na comunicação a gente tá testando os limites do quanto podemos intervir sem afetar a ideia.

September 6, 2020

Sobre o uso da filosofia para entender o presente

Ontem acho que consegui articular um pouco meu incômodo com certos usos da filosofia para entender o presente (e isso acaba visibilizando alguns perigos que enxergo pra mim). Acho que a pandemia e a massa de textos e desejos de ocupar o presente tornou claro esses problemas.

O incomodo vem de duas formas de lidar com a filosofia. A primeira não vou me demorar, mas tem a ver com uma certa postura que pensa a filosofia apenas em termos de texto e de análises e explicações sem fim de textos clássicos (a cultura uspiana em suas piores formas cai nisso).

A segunda — por isso mencionei a outra — seria seu avesso: nela se tentaria captar novidades em seu curso de desenvolvimento inédito. Procuraria descrever e dar forma positivamente ao que há de novo numa situação a partir dos dados disponíveis ou de uma análise da superfície.

Um problema que aparece pra mim nessa perspectiva é um pouco o paradoxo do Mênon: se eu estou diante do novo e tento captar o elemento singular dele, como vou reconheci que tive sucesso nessa investigação? Não acho uma questão simples, mas sinto que no afã se evita essa questão.

E para tornar os limites do pensamento bem visíveis, é só pensar num autor como Deleuze, explicitamente preocupado com o surgimento da novidade. É bom notar que sua obra não tem sua força em tentar elaborar o que há de inédito em seu tempo, mas de entender as suas condições.

Deleuze é um kantiano, apesar das pessoas gostarem de ignorar esse fato. Não faria sentido algum pra ele dar uma descrição positiva do seu tempo presente sem qualquer intermediação. E por isso que falei da análise ser problemática quando feita a partir de dados ou da experiência.

Acho que quando se corre atrás da novidade demais — a ponto de querer dar conta dela na sua novidade integral —, acaba-se enrascando numa situação em que não se tem critérios para avaliar do que se tá falando. Acaba-se apenas produzindo uma outra perspectiva como todas as outras.

E o problema não é com a perspectiva ou o ponto de vista novo gerado em si, mas com a expectativa de que ele — por ter sido elaborado por alguém com intuitos filosóficos— transcenda em alguma medida, mas não absolutamente esse ponto de vista.

O problema está no fato de que ainda que esse ponto de vista seja válido, ele não necessariamente (ao menos não de imediato) nos dá ferramentas pra distinguir os próprios elementos que são o novo numa situação e outros elementos que já faziam parte de nós ou do mundo antes.

Isso fica um pouco confuso, mas tou pensando na teoria do conhecimento do Espinosa. Pra ele a imaginação é um conhecimento válido, mas um em que a gente conhece as coisas fora de nós apenas a partir da sua interação com nós.

Como não temos em nós uma delimitação clara do que somos, não temos critério para diferenciar o que é da coisa e o que é nosso. Acaba-se tendo um conhecimento real mas confuso. Acredito que a análise mais imediata do novo caia em problemas parecidos se feita sem intermediações.

A gente não conhece o novo e não conhece exaustivamente também o mundo e a nós mesmos pra diferenciar claramente. Não temos critérios para avaliar se estamos de fato chegando no elemento singular em nossas análises pois os próprios pontos cegos da perspectiva não são disponíveis

Isso não significa pra mim que seja impossível se aproximar do novo na filosofia — ou seja, com a expectativa de produzir algo que seja mais do que uma opinião —, mas que pra fazer isso é preciso fazer uma triangulação, uma tabelaque nos permita fugir dos limites epistêmicos.

Pois caso contrário, e esse é um pouco o que tou tentando falar aqui mas tá todo torto, a gente vai sempre produzir uma opinião que tem que ficar se revisando constantemente a partir de cada novo desdobramento de um evento.

E não é que acho que isso seja ruim ou algo que devemos temer no campo das opiniões/perspectivas singulares, mas não acho que isso é filosofia (acho que o valor da filosofia está em conseguir se descolar parcialmente da sua situação — daí ser sempre possível reativar o passado).

Se você está, porém, inserido num movimento constante de revisão do seu ponto de vista, é como se você estivesse apenas correndo atrás do presente sem nunca estar efetivamente nele (quer dizer, sem estar nele como você quer, fornecendo uma articulação inteligível dele).

(Parêntesis metodológico: acho que na prática ninguém acaba fazendo isso completamente, mesmo as análises ruins apenas fazem isso apenas tendencialmente, jamais entrando integralmente nessa dinâmica de correr atrás. De modo que o que tou falando aqui são mais tipos o que casos.)

Como seria a triangulação? Eu quero voltar pra isso pois eu acho que isso ainda não tá muito claro pra mim ainda, mas teria a ver com você ter algum anteparo FORA DA SITUAÇÃO que permite você avaliar. Esse anteparo pode ser algum conceito, algum princípio ou algum procedimento.

A forma de lidar com o presente passaria então por um desvio por fora dele que torna um contraste visível. Como tenho algumas posições já mais desenvolvidas pra mim, eu diria que esse desvio se dá sempre a partir de algo que é eterno (que se descola -parcialmente- da situação).

Mas o eterno não é algo mágico, ele é simplesmente algo que não é compreendido a partir dos termos a partir dessa situação. Dessa forma acho que as melhores análises em filosofia acabam sendo não aquelas que conseguem captar o que tem de novo”, mas aquelas que conseguem medir.

Ou seja, aquelas que abrem mão de dar conta integralmente da singularidade da novidade em curso para compreendê-la a partir de algum horizonte que permite demarcar com mais clareza (embora também não exaustiva) alguns elementos que de fato são inéditos.

E ainda que nesse contraste o próprio ineditismo continue sendo um pouco incompreensível, tendo apenas sido melhor situado” a partir da fricção com algo que estaria fora dessa situação.

September 4, 2020

Os sistemas de controle hierárquico na filosofia universitária

Não devia estar incomodado com esse assunto, mas tanto tou que lembrei de repente do Jason Stanley falando que as pessoas tem que earn their stripes” pra ter uma voz sobre a profissão (passando por revisão de pares, subindo na carreira). Deslize de honestidade, né?

Eu acho que o sistema de revisão de pares em filosofia, das formas que ele é feito, favorece um tipo muito específico de conservadorismo. Não acho que existam épocas na filosofia sem combate entre conservadorismo e progressismo institucional, mas cada época com seus demônios.

Dito isso, como na filosofia muitas diferenças sequer podem ser objeto de convergência dado a natureza da atividade (e como muitos pesquisadores agem como se fosse possível) a consequência é que muitos pareceres leem o texto a partir de demandas impossíveis para aquele texto.

A menos que você dê sorte de estar num nicho legal, com pessoas que pensam de outra forma, parece que no fim se resume a uma relação assimétrica de poder. Como todo mundo que sobrevive passa por esse sistema e muitas vezes cede a ele, parece muito difícil imaginar outras coisas.

September 4, 2020

Livros de velhice e esboço das etapas da evolução autoral

Livros de velhice, melhores livros. Pensando em Platão (As Leis), Deleuze (O que é a filosofia?), Coetzee (trilogia de Jesus). Sinto sempre que é um momento que o autor entende a gramática que opera e tudo funciona mais lento (no sentido de um esportista que vê o jogo lento).

Hipótese sobre quatro fases de um autor: 1) Pré-história (navegando nos problemas inconscientemente) 2) Acontecimento (esbarra explicitamente no problema, mas não sabe elaborá-lo) 3) Sistematização (constrói a gramática do problema) 4) Velhice (afrouxa os limites da gramática).

September 3, 2020

Atenção a uma outra perspectiva em embates teóricos

Ontem bateu um pouco de luz (que como bom platonista que sou, vou chamar de PERSPECTIVA — mas não aquela do ponto de vista pessoal, mas no sentido de ganhar perspectiva”) sobre como algumas disputas que tem nessa rede sobre intelectuais da velha guarda e da nova guarda é espuma.

Não que alguns dos temas não sejam importantes, não que existam pessoas sendo escrotas aqui e ali (e isso acontece dos dois lados), e não que a gente não acabe se posicionando nesses dramas (afinal, somos parte deles também e não acho que isso tenha que ser negado).

Mas, conversando com amigos, acho que ficou claro como em alguma medida o que tá em jogo é muito defender as regras no jogo que tendem para seu ponto de vista pessoal (e tudo bem isso, não acho isso moralmente equivocado), mas é bom também lembrar que tem coisas fora disso.

E isso fica até meio bobo e talvez críptico, mas acho que no fim quando você se engaja no campo da pesquisa, do pensamento e da educação (tudo em sentido amplo) tem sempre movimentos que atravessam nossas perspectivas sem também que componham uma narrativa harmoniosa e télica.

Acho que o jogo do ponto de finitude acaba sendo pela estruturação de uma linha coerente, de movimentos que são retrospectivamente coesos e que acabem dispondo as coisas de modo que muitas vezes justifica o seu ponto de vista. Mas acho que tem algo mais que isso que é esquisito.

E ainda que seja difícil e até desorientador, é bom também, em alguns momentos (e por isso também acho que esse ganhar perspectiva” não seja algo que possamos permanecer junto por muito tempo) se libertar da nóia de apenad afirmar o seu ponto de vista e se ligar a outra escala.

De novo, tudo aqui meio críptico, meio confuso (e tudo bem, acho que já não estou mais diante da luz que brilhou ontem), mas é apenas pra dizer que também dá pra, de vez em quando, largar de mão o ponto de vista pessoal pra respirar e se apoiar nesse movimento que atravessa.

E atravessa de modo que a gente — justamente — não consegue compreender, pois quando compreendemos já estamos escalonando ele pra caber no nosso ponto de vista e nos nossos desejos. Ou seja, tem algo de confiar que tem algo além desses jogos, ainda que não se possa garantir.


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