September 6, 2020

Sobre o uso da filosofia para entender o presente

Ontem acho que consegui articular um pouco meu incômodo com certos usos da filosofia para entender o presente (e isso acaba visibilizando alguns perigos que enxergo pra mim). Acho que a pandemia e a massa de textos e desejos de ocupar o presente tornou claro esses problemas.

O incomodo vem de duas formas de lidar com a filosofia. A primeira não vou me demorar, mas tem a ver com uma certa postura que pensa a filosofia apenas em termos de texto e de análises e explicações sem fim de textos clássicos (a cultura uspiana em suas piores formas cai nisso).

A segunda — por isso mencionei a outra — seria seu avesso: nela se tentaria captar novidades em seu curso de desenvolvimento inédito. Procuraria descrever e dar forma positivamente ao que há de novo numa situação a partir dos dados disponíveis ou de uma análise da superfície.

Um problema que aparece pra mim nessa perspectiva é um pouco o paradoxo do Mênon: se eu estou diante do novo e tento captar o elemento singular dele, como vou reconheci que tive sucesso nessa investigação? Não acho uma questão simples, mas sinto que no afã se evita essa questão.

E para tornar os limites do pensamento bem visíveis, é só pensar num autor como Deleuze, explicitamente preocupado com o surgimento da novidade. É bom notar que sua obra não tem sua força em tentar elaborar o que há de inédito em seu tempo, mas de entender as suas condições.

Deleuze é um kantiano, apesar das pessoas gostarem de ignorar esse fato. Não faria sentido algum pra ele dar uma descrição positiva do seu tempo presente sem qualquer intermediação. E por isso que falei da análise ser problemática quando feita a partir de dados ou da experiência.

Acho que quando se corre atrás da novidade demais — a ponto de querer dar conta dela na sua novidade integral —, acaba-se enrascando numa situação em que não se tem critérios para avaliar do que se tá falando. Acaba-se apenas produzindo uma outra perspectiva como todas as outras.

E o problema não é com a perspectiva ou o ponto de vista novo gerado em si, mas com a expectativa de que ele — por ter sido elaborado por alguém com intuitos filosóficos— transcenda em alguma medida, mas não absolutamente esse ponto de vista.

O problema está no fato de que ainda que esse ponto de vista seja válido, ele não necessariamente (ao menos não de imediato) nos dá ferramentas pra distinguir os próprios elementos que são o novo numa situação e outros elementos que já faziam parte de nós ou do mundo antes.

Isso fica um pouco confuso, mas tou pensando na teoria do conhecimento do Espinosa. Pra ele a imaginação é um conhecimento válido, mas um em que a gente conhece as coisas fora de nós apenas a partir da sua interação com nós.

Como não temos em nós uma delimitação clara do que somos, não temos critério para diferenciar o que é da coisa e o que é nosso. Acaba-se tendo um conhecimento real mas confuso. Acredito que a análise mais imediata do novo caia em problemas parecidos se feita sem intermediações.

A gente não conhece o novo e não conhece exaustivamente também o mundo e a nós mesmos pra diferenciar claramente. Não temos critérios para avaliar se estamos de fato chegando no elemento singular em nossas análises pois os próprios pontos cegos da perspectiva não são disponíveis

Isso não significa pra mim que seja impossível se aproximar do novo na filosofia — ou seja, com a expectativa de produzir algo que seja mais do que uma opinião —, mas que pra fazer isso é preciso fazer uma triangulação, uma tabelaque nos permita fugir dos limites epistêmicos.

Pois caso contrário, e esse é um pouco o que tou tentando falar aqui mas tá todo torto, a gente vai sempre produzir uma opinião que tem que ficar se revisando constantemente a partir de cada novo desdobramento de um evento.

E não é que acho que isso seja ruim ou algo que devemos temer no campo das opiniões/perspectivas singulares, mas não acho que isso é filosofia (acho que o valor da filosofia está em conseguir se descolar parcialmente da sua situação — daí ser sempre possível reativar o passado).

Se você está, porém, inserido num movimento constante de revisão do seu ponto de vista, é como se você estivesse apenas correndo atrás do presente sem nunca estar efetivamente nele (quer dizer, sem estar nele como você quer, fornecendo uma articulação inteligível dele).

(Parêntesis metodológico: acho que na prática ninguém acaba fazendo isso completamente, mesmo as análises ruins apenas fazem isso apenas tendencialmente, jamais entrando integralmente nessa dinâmica de correr atrás. De modo que o que tou falando aqui são mais tipos o que casos.)

Como seria a triangulação? Eu quero voltar pra isso pois eu acho que isso ainda não tá muito claro pra mim ainda, mas teria a ver com você ter algum anteparo FORA DA SITUAÇÃO que permite você avaliar. Esse anteparo pode ser algum conceito, algum princípio ou algum procedimento.

A forma de lidar com o presente passaria então por um desvio por fora dele que torna um contraste visível. Como tenho algumas posições já mais desenvolvidas pra mim, eu diria que esse desvio se dá sempre a partir de algo que é eterno (que se descola -parcialmente- da situação).

Mas o eterno não é algo mágico, ele é simplesmente algo que não é compreendido a partir dos termos a partir dessa situação. Dessa forma acho que as melhores análises em filosofia acabam sendo não aquelas que conseguem captar o que tem de novo”, mas aquelas que conseguem medir.

Ou seja, aquelas que abrem mão de dar conta integralmente da singularidade da novidade em curso para compreendê-la a partir de algum horizonte que permite demarcar com mais clareza (embora também não exaustiva) alguns elementos que de fato são inéditos.

E ainda que nesse contraste o próprio ineditismo continue sendo um pouco incompreensível, tendo apenas sido melhor situado” a partir da fricção com algo que estaria fora dessa situação.


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