May 4, 2022

A navegação negativa

Acho que existe algo interessante em caminhar rumo a um outro ponto negativamente” (por meio de isso não, nem aquilo”) se não se recai no fetiche de crer que se está indo em direção a algo que não possui forma alguma (ou que não acaba encontrando sua forma no caminhar).

Isso está meio abstrato mas como sempre é sobre a mesma coisa que falo aqui o tempo inteiro: o processo de se encontrar em um mundo em que somos ininteligíveis para nós mesmos. E para isso acho que acaba sendo necessário retraçar esses passos feitos em negativo”.

Não por achar que existe algum caráter mágico” nesse negativo, um inefável que soluciona todos os nossos impasses. Acho que o que falo aqui é mais corriqueiro, uma espécie de esforço de olhar em volta e perceber que mesmo os recuos e desvios apontam para algo singular.

O que não significa também que esse singular seja algo da ordem do plenamente compreensível, de um contorno que conseguimos enxergar vivamente como se finalmente saíssemos da caverna. Trata-se de algo singular por não poder ser qualquer coisa, por não se bastar qualquer desvio.

Acho que a partir desse momento a gente consegue entender um pouco melhor a nossa dificuldade de se orientar. Talvez não seja a falta de um caminho, mas também uma dificuldade quase que natural de abarcar um desejo e uma liberdade que só aparece em seus constrangimentos.

É por isso que acredito cada vez mais que a experimentação com diferentes disciplinas (a criação ativa de constrangimentos, de regras e procedimentos, tão cara aos meus amados Perec, Carson e Aira) é a forma de ao menos tentarmos (na medida do possível) ser livres.

Na medida do possível pois sabemos bem o mundo que vivemos e a distribuição desigual dos constrangimentos externos (e que não raro são massacrantes). Que é muito difícil se pôr nessa esfera positiva quando estamos cansados, exaustos, sugados pelo tanto que há de horrível.

Ainda assim, não acho que hã muita alternativa para esse impasse fora encontrar as disciplinas no caminho que nos ajudem a sofrer menos e viver masi. E claro, isso acho que não se dá sozinho, pois se conseguimos respirar, quando conseguimos, é porque passamos a viver juntos.

Tudo isso de alguma forma me lembra a epígrafe adorniana do livro do Sérgio Ferro. Não vou fingir que entendi ela, então vou apenas deixá-la sem comentários como meu gesto de non finito: A liberdade é o negativo polêmico do sofrimento causado pela opressão social.”


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