December 20, 2019

Sobre leituras narcísicas

O que fazer diante de pessoas que só conseguem ler si mesmas no outro (em outros livros)? Eu acho que por um lado tem certos constrangimentos materiais que provocam isso. Que tornam isso uma espécie de auto-defesa válida. A identidade tem um valor estratégico em certos casos.

Eu me pergunto muito se é possível incitar uma disposição que o vetor mude de direção. Se é possível estimular de alguma forma uma leitura que descentre”. Pois o problema desse tipo de disposição é que somos obrigados a deixar de sermos nós mesmos em alguma medida.

Eu sempre penso no dilema do conatus. O conatus espinosano tem ali um problema, uma questão, que é a tendência a perpertuar-se em si mesmo, mas isso as vezes vem com um custo de se travar, pois há ocasiões em que para se perpetuar” é preciso se transformar (Canguilhem viu isso).

Talvez por isso a experiência de eros em sentido amplo é algo que tem me interessado. É a ocasião em que de algo tão forte” nos atravessa que nos leva para fora de nós mesmos. A Carson viu isso muito bem no Eros, the bittersweet.

Mas ao mesmo tempo, ficar refém desse tipo de encontro parece deixar tudo ao acaso. É difícil. E ainda fica a pergunta, será que existe uma forma de se fechar a esse tipo de disposição? Ou será que o amor, a experiência erótica, consegue nos mover independente de como estamos?

Por isso a minha pergunta. Ler literatura sempre foi, de certa forma, pra mim, a maneira como eu era afetado por alguma espécie de outro. De ser transformado e ficar um pouco menos ensimesmado (não que certos impulsos não retornem, e retornam).

Daí o meu espanto, minha tristeza, com a maneira como outras pessoas vão pra literatura pra outra coisa, pra procurar a si mesmas (e de fato, eu entendo, a identificação é uma droga potente - como eros também é, na sua desidentificação), para se sentirem referendadas.

E de novo. Eu entendo. Há uma questão de fato “boa”” de se identificar. É acolhedor, constrói comunidade, dá sentido, faz sentido, explica coisas da nossa vida. Mas isso quando pende completamente para esse lado me parece que acaba empobrecendo a experiência geral.

December 11, 2019

As mazelas de um habermasianismo vulgar hegemônico

Um dos problemas do Habermas pra mim, enquanto figura intelectual, é que ele domina completamente o campo daqueles que de alguma forma apostam na produção de convergências ou de articulações em torno de comuns. Mas ele faz isso de uma forma abso

Quando digo que ele domina quer dizer que esse esforço de compreensão, harmonização, inteligibilização, acaba passando a impressão de poder ser feito só com base no racionalismo” bobinho dele. E como se não houvesse formas menos idiotas de fazer isso, de valorizar o comum.

E o que cansa é que no avesso disso está esse esforço incessante de desler o outro. Nenhuma nenhuma boa vontade. Até a boa vontade foi reduzida a coisa de tolinhos e ingênuos. O que importa é se firmar ainda mais na sua posição, nos seus jargões, nas suas referências e valores.

December 8, 2019

Um comentário sobre o Homem Sério Sensual

O homem sensual sério” é talvez um dos conceitos mais importantes para uma futura ética antipredicativa. Não que ele exista. Ele talvez seja apenas um tipo que se aspira. Entre outras características tenho pensado como ele preza pelo humilde (cf. Auerbach).

Pois se ele seduz, e procura sempre seduzir, trata-se, como diz a @giftcard_sad, de uma sedução que se apaga para fazer o outro brilhar. Mas é preciso precisar esse ponto ao compará-lo com sua antítese: o que chamo, provisoriamente: de homem sensual narcísico (HSN).

Enquanto o HSN seduz para si próprio, para atrair os olhos para si mesmo (para se construir a partir do olhar de outrem) - e nisso ele consegue ser bem eficaz -, o HSS quer seduzir o outro. O que dominaria o HSN seria, então, uma espécie de desejo de se perpetuar meio vampiresco.

O eros mobilizada pelo HSS teria, portanto, um vetor oposto ao do HSN. É por isso que talvez não seja um apagamento, mas um movimento de se deixar tomar por outro, de ficar misturado com um outro enquanto o próprio outro acaba por se tornar algo a partir do contato com o sedutor.

Mas é justamente por esse ato de generosidade (pela inversão do vetor da experiência erótica presente no HSS) que nenhum espaço ou distância seduz o HSS mais do que a autêntica vergonha (shamefastness) - que em parte é elaborada pela Anne Carson.

A vergonha, no caso, não é de ordem contingente, é aquela vergonha que, por falta de termo melhor, eu chamaria de existencial. É banal, claro, simples, e discreta. Mas justamente por isso acaba sendo absolutamente antisedutora. A exposição e o aparecer são evitados à todo custo.

O feitiço que o HSS sofre é, portanto, pela sua incapacidade de navegar na esfera de uma vergonha que efetivamente não quer aparecer. Se em qualquer outro tipo de vergonha ele consegue pescar uma novelty qualquer, o envergonhado o embairrera de todas as formas.

Produz-se, então, um charme que talvez seja capaz de atrair àqueles que tomam como missão primária a sedução séria do outro (ou seja, o HSS). Esse charme, que é um anti-charme, acaba sendo uma recusa de seduzir que funciona como o maior tipo de sedução que o HSS pode enfrentar.

Como? Pois justamente é a sua própria disposição mais íntima, a de alguém que procura se aparecer junto do outro, que é negada. O homem sério sensual é obrigado a dar se conta de si mesmo e da natureza da sua própria sedução. É ele, dessa vez, que se vê espelhado e em destaque.

November 26, 2019

O amor entre o começo e a eternidade

Uma das coisas mais brilhantes no Fedro, e que a Carson aponta e põe em relevo como só ela consegue, é mostrar que Eros não pode ter um começo” que podemos delimitar (e previnir) temporalmente. Não dá pra fazer, como Lísias, e tentar simplesmente evitá-la de antemão.

Essa experiência é de ordem divina, logo é eterna. Seu começo entre os seres finitos seria o ponto que somos atravessados por algo de infinito que nos excede e que acaba, por efeito, nos movendo muitas vezes contra as nossas vontades.

Talvez seja possível entender o γλυκύπικρον (agridoce) como essa experiência em que é se posto diante de uma promessa infinita (doce) que deve ser enfrentada num campo concreto repleto de obstáculos (amargo). Mas o curioso é que sem o amargo não haveria distância pra sentir Eros.

November 21, 2019

Dosando simplicidade e complexidade

Rolou agora uma interação entre um twitteiro e um político (que não vou comentar qual é, não perguntem, não é difícil achar) que me deixou um pouco triste com a mídia. Uma tentativa de tratar as questões de modo nuançado foi completamente chapado por uma demanda simplificante.

É muito difícil lidar com problemas complexos em escalas complexas. A coisa fica ainda mais difícil quando os problemas são artificialmente separados dos seus contextos afim de simplificá-los sem o cuidado adequado de entender que esse gesto foi feito.

O corte da relevância é algo fundamental (e tem momentos que a simplificação se faz necessária), mas enquanto as coisas forem postas “““em última instância”““” em termos de pão-pão queijo-queijo a gente não vai conseguir sair desse ciclo anti-intelectualista.

A realidade é complexa, é complicada, é composta de infinitas relações que compõem os eventos, acontecimentos, coisas etc. O problema é entender o ponto de simplificação necessário para os efeitos que nos interessam (e eles variam conforme o ponto de vista).

Nota: a thread de fato tem problemas na pessoa que tem a visão nuançada, como me apontou uma amiga. Tem um tom meio professoral-homem que é bem problemático mesmo. Não acho que retira o problema da exigência de simplificação por parte do interlocutor.

November 12, 2019

O equilíbrio do generalista e o detalhista

O problema é encontrar um gradiente adequado de mediocridade na escrita filosófica. Falo aqui de um ponto em que se abre mão da tecnicidade, da minúcia em nome do movimento, do avanço. O problema é que não existe filosofia das generalidades, sem minúcia, sem o relojoeiro.

Se a Crítica da Razão Pura é, pra mim, o modelo de obra (e irrepetível, obviamente, mas ainda assim acho que tem algo de paradigmático na sua estrutura, nas escalas que ela opera) é porque o Kant consegue equilibrar as disposições de um amante generalista com detalhes.

Articulação conceitual técnica e fina que não se deixa perder em discussões infinitas, pois o que está em jogo é um certo problema, que o obriga a deixar em aberto inúmeras questões em nome de um tratamento mais amplo.


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