March 31, 2021

Perspectivas sobre a transformação do sistema universitário nacional

Pensando como no entorno de 2013 (começando um pouco antes) até ali meados de 2016 (o golpe) havia um possibilidade de transformação do campo do pensamento que acabou sendo abortado com o decrescimento das universidades e deixando todo mundo no meio do caminho, cada um por si.

É óbvio que o fiador desse processo ser a possibilidade de um emprego público na universidade ou num colégio federal é — retrospectivamente, pelo menos pra quem como eu quis ser enganado — devia ser um sinal. Pois seria uma questão de tempo os recursos não darem vazão.

Não daria pra acomodar todo mundo, mas sinto que agiamos como se desse. Isso foi (é) muito doloroso, mas dá pra ver claramente agora como voltamos a um momento em que (ao menos na filosofia) o espaço pra coisas mais ousadas não existe mais e o especialismo é a forma de acesso.

Várias pessoas que levavam uma formação heterodoxa (divergente, mas uma divergência que parecia que iria conseguir se estabelecer) foram pegas de surpresa e tem um saber acumulado que não parece mais ajudar tanto na hora de concorrer às minguadas vagas que sobraram.

Tem um ressentimento enorme que vai se acumulando, claro. Mas acho que é o caso de pensar pra como a situação foi mal pensada (talvez por não ter sido pensada?). Olhando agora sinto que a batalha foi perdida quando a filosofia não conseguiu se garantir direito no ensino básico.

Acho que foi nesse ponto que se perdeu a chance pra dar algum destino para aquelas formações mais heterodoxas. Que talvez não conseguissem seu sonho, mas ao menos teriam algum mercado (pelo menos no momento).

Meu pessimismo me diz que a tendência é que os efeitos desse ciclo abortado não apareçam imediatamente. Mas basta acompanhar os concursos e ver quem passa pra ver que os perfis mais clássicos tem sobressaído (quando não se está apenas ajudando os seus).

March 31, 2021

A divisão internacional do trabalho filosófico

A divisão internacional do trabalho filosófico é cômica pois nem produzimos literatura cientifica em massa que vai circular em periódicos caríssimos que circulam fortunas longe da mão dos filósofos autores e também não produzimos ideologias que ao menos povoam campos alheios.

No primeiro caso temos sobretudo a tradição analítica e o método publish or perish acaba sendo o modo de operar e existir na academia americana. Entre os ideólogos quem acaba tendo exercendo a função ainda são franceses e o que mais importa nesse meio é o networking.

Americanos produzem produtos de baixa circulação individual mas que compõem ecologias complexas que fazem montar fortunas que jamais chegam neles e franceses acabam ocupando os espaços mais tradicionalmente intelectuais de emissão unilateral entre disciplinas.

E nós? Talvez já ouve um momento francês (pré-usp) en que você tinha figuras da inteligentsia circulando em jornais e cadernos culturais. Mas sabemos que a filosofia raramente teve capacidade de fertilizar seu próprio quintal de modo contínuo, sendo no máximo antena de gringo.

Hoje em dia (desde a consolidação da usp) a gente faz artigos, copia o modelo americano mas esses artigos são todos abertos, não movimentam um tostão. A gente também não participa da rede americana. A lingua é uma barreira, mas não parece ser só isso.

A gente parece estar eternamente num processo de recuperação, exatamente como economias periféricas. Diferente delas, porém, não consigo imaginar muito bem qual seria a função (se há) do nosso atraso” ou da nossa incapacidade de completar a entrada no mercado global.

March 30, 2021

O que a literatura mapeia hoje em dia?

Eu tenho pensado muito nessa citação do Paulo Arantes: em matéria de processo social de continuidade e mudança, justamente porque implica desintegração, a experiência literária não pode ser considerada o único teste, nem mesmo o teste central, ao qual submeter seu andamento.”

É algo breve e que aparece no artigo Filosofia Francesa e Tradição Literária no Brasil e nos Estados Unidos”. Eu acho que ela me faz perguntar sobre o que sobra para a literatura (e a crítica/teoria literária em geral) diante da perda de referência.

Não que a literatura precise ter função, mas eu sou auerbachiano demais; acho que ela sempre acaba contrabandeando uma espécie de visão de mundo” (por falta de palavra melhor?) em seus atos. Não precisa nem ser uma visão completa, mas acho que algo é comunicado (perspectiva?).

Também não acho que não teve mais literatura de alta qualidade desde que a nossa experiência começou a se desintegrar no momento em que as relações de trabalho capitalista começaram a penetrar e articular o tecido social (falo aqui óbvio da experiência moderna).

É chover no molhado (e eu devo apenas estar repetindo o Schwarz, que tenho lido muito esses dias além de outras coisas que devem ser clichês pra quem é do campo de crítica), mas dá pra ver sinais dessa desintegração ao longo do desenvolvimento do romanesco.

Uns óbvios: o profundo tédio que parece atravessar os romances de Flaubert e Henry James, o desejo de aventura (e não apenas a marítima) que tem no Melville, as infindáveis utopias deslocadas que perseguem o Dostoievski e claro, essa coisa esquisitíssima que é o Machado.

(um salve para um dos grandes romances do final do século XIX, A familia Golovliov” do Mikhail Saltykov-Shchedrin, que captura como ninguém uma certa defasagem no convívio social fruto da figura do espírito de porco” — James Wood, americano, no prefácio chama de hipocrisia)

Depois dessa série de romances (que talvez fechariam um ciclo realista” ou pós-realista”, se quisermos ser caricatos e negar que tem muito mais acontecendo) tem aquele momento dos autores que supostamente mimetizariam a crise da experiência”: Joyce, Kafka, Woolf, etc.

Não *comunicariam* uma experiência, mas *comunicariam* a própria desintegração da experiência. Teríamos talvez em Beckett e Borges os últimos ecos desse procedimento da incomunicabilidade. Erudição excessiva e caricatural misturado com localismos em um e comédia e vazio no outro.

A minha pergunta é, e depois que isso foi esgotado? Ainda mais considerando a frase do Paulo Arantes. Pois de certa forma essa comunicação do incomunicável marca um limite de um fracasso, uma espécie de impossibilidade de transmitir (Benjamin parece acenar nessa direção também).

Mas acho que apesar disso, nem por isso deixou de ter literatura interessante (isto é, que comunica *algo*) que foi criada na medida em que essa desintegração foi se acelerando. Dá pra falar de muitos nomes (Carson, Murnane, Ferrante) que fazem mais que um realismo genérico.

Inclusive acho que um dos grandes romances do século XX, ainda pouco falado (“A vida: modos de usar”, do Perec) tá aí para ser ainda discutido pois justamente ele não pode ser lido tão facilmente nessa chave da incomunicabilidade, da simples gestação de um fracasso epistêmico.

Minha pergunta é então o que esses romances fazem do ponto de vista epistêmico? (É uma pergunta que talvez denuncia o ponto de vista fechado de que tou partindo). Pois suspeito que a resposta de que eles simplesmente dão conta de singularidades não é boa.

Acho que isso é uma resposta fácil demais e também condena a uma espécie de solipsismo. Meu maior problema com essa hipótese é que se o que são trocadas são singularidades nenhum reconhecimento seria possível, nenhuma saída de si. Deveria elaborar isso, mas fica pra outra hora.

Por outro lado, também não parecem que eles comunicam a incomunicabilidade, esse momento parece em certa medida estar esgotado e também ser diferente. E quando aparece a gente só consegue ficar meio entediado com essa prosa metida a poética ensaiando >>>o inominável<<<.

Tem ainda as pessoas (escritores) que tentam fingir que o romance realista com suas pretensões de dar conta formalmente das tensões sociais (uma espécie de crítica da ideologia?) ainda está vivo. Os Franzen da vida. Mas a gente pode até gostar de ler, mas sabemos que já deu”.

Fico então perguntando o que sobra? Acho que talvez nem faça sentido essa pergunta, talvez eu esteja preso demais às pretensões auerbachianas. Mas eu realmente sinto que um livro como o do Perec é um bom caso pois parece que algo ali é partilhado, ou eu partilho de algo ao ler.

Ainda sinto que algo é comunicado, que algo se transmite *apesar da desintegração social*. E não apenas um apesar”. Eu diria até que tem algo de bom, que ajuda a mapear coisas, a ter algumas dimensões, ainda que jamais se deva esperar desse tipo de romance a iluminação do todo.

March 29, 2021

A reorientação do pensamento pela prática

Como alguém da filosofia, mais uma vez sendo vitima de compreender as coisas com um certo atraso.

Entendendo algumas pretensões equivocadas minhas e algumas irritações com filosofias alheias. Conseguindo situar melhor pra mim em que medida não são as coisas que devem ser pensadas, encaradas como objetos, mas as práticas que devem nos fazer pensar e funcionar de referência.

De alguma forma acho que não é nada muito complicado de entender teoricamente”. Inclusive não é algo que eu não vá encontrar sendo expresso de uma forma ou de outra em autores que já frequentei mais ou menos (Platão, Espinosa, Marx, Deleuze, etc).

A dificuldade toda é que essa variação de perspectiva tem que ser um efeito da prática e não basta ser feita na teoria. Ou melhor, quando é feita na teoria ela segue ali, vazia, sendo apenas a própria realização do erro que é confundir o que é da ordem da teoria e da atividade.

March 23, 2021

Sobre um certo conservadorismo nas revoluções teóricas

Acho cômico e triste como a própria forma como elaboramos uma resistência às metrópoles ainda tem a forma importada delas. Claro, acho que nada disso é voluntário, mas parece que essa insistência de alguma forma da limites pra qualquer voluntarismo que quer escapar.

Isso ficou meio truncado pelos caracteres. Dá pra traduzir isso de modo vulgar hein: que situação triste em que resistir às formas coloniais é fazer artigos expositivos ou exegéticos (jamais lidos) com conteúdo anti/decolonial. Claro, que isso não é tudo, mas é parte relevante.

A coisa só dá mais um giro melancólico/farsesco quando substitui as referências aos estrangeiros de fora pelos estrangeiros de dentro”. Acho que isso é um capítulo mais delicado pois as fronteiras da academia estão sendo efetivamente permeadas por quem não tinha espaço antes.

Por um lado de fato (e tentei defender isso no texto que escrevi pro Experimentos de filosofia pós-colonial”) temos a entrada de novas referências e novas formas de pôr as próprias questões que não combinam imediatamente com a maneira europeia e geram bons conflitos.

Por outro lado, isso não deixa de produzir um refugo perigoso por parte de quem estava dentro. Que se aproveita da mudança pra rapidamente objetificar e idealizar essas novas práticas convertendo elas em objetos de estudo” de maneira que enfraquece a potência crítica.

Uma espécie de conversão da nova matéria em doutrina” que apenas tem como efeito deslocar os termos da disputa de um campo entre acadêmicos em situação confortável e que acaba não pondo em questão as formas da disputa (daí termos apenas mais exegese).

Não acho que isso seja a maioria, mas a posição privilegiada de quem realiza essa manobra deveria deixar a gente mais suspeito, pois é quem efetivamente tem tração e espaço pra difundir suas práticas.

Por isso que não acho que essa novidade deva ser defendida apenas no plano das ideias. Acho que a forma de manter essas transformações vivas é lutar para que a universidade continue seu movimento de abertura (o que passa por repensar acesso e subida na hierarquia acadêmica).

Repensar avaliações de bolsas, acesso à pós e até a maneira como vão ser pensados e distribuídos os pontos temáticos em concurso. É nessa esfera, acredito, que é possível defender essas ideias novas.

Se o foco for apenas numa defesa vaga e não-prática de abrir para novas referências” acho que só acabamos reproduzindo o mesmo modelo que já domina a gente e que de fato bloqueia (ao enfraquecer o elemento conflituoso dessas novas ideias) transformações da cultura acadêmica.

March 23, 2021

O problema de pensar a partir do Brasil (via Paulo Arantes)

Sugestão para os amigos desavisados que querem ler o novo” do Paulo Arantes. Pulem o primeiro ensaio e leiam o segundo: Ideologia Francesa, opinião brasileira: um esquema”. Deixa mais claro os porquês de se aventurar por esse tipo de análise e que num é questão de briguinha”.

Inclusive acho cômico e triste como a própria forma como elaboramos uma resistência às metrópoles ainda tem a forma importada delas. Claro, acho que nada disso é voluntário, mas parece que essa insistência de alguma forma da limites pra qualquer voluntarismo que quer escapar.

Isso ficou meio truncado pelos caracteres. Dá pra traduzir isso de modo vulgar hein: que situação triste em que resistir às formas coloniais é fazer artigos expositivos ou exegéticos (jamais lidos) com conteúdo anti/decolonial. Claro, que isso não é tudo, mas é parte relevante.

A coisa só dá mais um giro melancólico/farsesco quando substitui as referências aos estrangeiros de fora pelos estrangeiros de dentro”. Acho que isso é um capítulo mais delicado pois as fronteiras da academia estão sendo efetivamente permeadas por quem não tinha espaço antes.

Por um lado de fato (e tentei defender isso no texto que escrevi pro Experimentos de filosofia pós-colonial”) temos a entrada de novas referências e novas formas de pôr as próprias questões que não combinam imediatamente com a maneira europeia e geram bons conflitos.

Por outro lado, isso não deixa de produzir um refugo perigoso por parte de quem estava dentro. Que se aproveita da mudança pra rapidamente objetificar e idealizar essas novas práticas convertendo elas em objetos de estudo” de maneira que enfraquece a potência crítica.

Uma espécie de conversão da nova matéria em doutrina” que apenas tem como efeito deslocar os termos da disputa de um campo entre acadêmicos em situação confortável e que acaba não pondo em questão as formas da disputa (daí termos apenas mais exegese).

Não acho que isso seja a maioria, mas a posição privilegiada de quem realiza essa manobra deveria deixar a gente mais suspeito, pois é quem efetivamente tem tração e espaço pra difundir suas práticas.

Por isso que não acho que essa novidade deva ser defendida apenas no plano das ideias. Acho que a forma de manter essas transformações vivas é lutar para que a universidade continue seu movimento de abertura (o que passa por repensar acesso e subida na hierarquia acadêmica).

Repensar avaliações de bolsas, acesso à pós e até a maneira como vão ser pensados e distribuídos os pontos temáticos em concurso. É nessa esfera, acredito, que é possível defender essas ideias novas.

Se o foco for apenas numa defesa vaga e não-prática de abrir para novas referências” acho que só acabamos reproduzindo o mesmo modelo que já domina a gente e que de fato bloqueia (ao enfraquecer o elemento conflituoso dessas novas ideias) transformações da cultura acadêmica.


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