March 30, 2021

O que a literatura mapeia hoje em dia?

Eu tenho pensado muito nessa citação do Paulo Arantes: em matéria de processo social de continuidade e mudança, justamente porque implica desintegração, a experiência literária não pode ser considerada o único teste, nem mesmo o teste central, ao qual submeter seu andamento.”

É algo breve e que aparece no artigo Filosofia Francesa e Tradição Literária no Brasil e nos Estados Unidos”. Eu acho que ela me faz perguntar sobre o que sobra para a literatura (e a crítica/teoria literária em geral) diante da perda de referência.

Não que a literatura precise ter função, mas eu sou auerbachiano demais; acho que ela sempre acaba contrabandeando uma espécie de visão de mundo” (por falta de palavra melhor?) em seus atos. Não precisa nem ser uma visão completa, mas acho que algo é comunicado (perspectiva?).

Também não acho que não teve mais literatura de alta qualidade desde que a nossa experiência começou a se desintegrar no momento em que as relações de trabalho capitalista começaram a penetrar e articular o tecido social (falo aqui óbvio da experiência moderna).

É chover no molhado (e eu devo apenas estar repetindo o Schwarz, que tenho lido muito esses dias além de outras coisas que devem ser clichês pra quem é do campo de crítica), mas dá pra ver sinais dessa desintegração ao longo do desenvolvimento do romanesco.

Uns óbvios: o profundo tédio que parece atravessar os romances de Flaubert e Henry James, o desejo de aventura (e não apenas a marítima) que tem no Melville, as infindáveis utopias deslocadas que perseguem o Dostoievski e claro, essa coisa esquisitíssima que é o Machado.

(um salve para um dos grandes romances do final do século XIX, A familia Golovliov” do Mikhail Saltykov-Shchedrin, que captura como ninguém uma certa defasagem no convívio social fruto da figura do espírito de porco” — James Wood, americano, no prefácio chama de hipocrisia)

Depois dessa série de romances (que talvez fechariam um ciclo realista” ou pós-realista”, se quisermos ser caricatos e negar que tem muito mais acontecendo) tem aquele momento dos autores que supostamente mimetizariam a crise da experiência”: Joyce, Kafka, Woolf, etc.

Não *comunicariam* uma experiência, mas *comunicariam* a própria desintegração da experiência. Teríamos talvez em Beckett e Borges os últimos ecos desse procedimento da incomunicabilidade. Erudição excessiva e caricatural misturado com localismos em um e comédia e vazio no outro.

A minha pergunta é, e depois que isso foi esgotado? Ainda mais considerando a frase do Paulo Arantes. Pois de certa forma essa comunicação do incomunicável marca um limite de um fracasso, uma espécie de impossibilidade de transmitir (Benjamin parece acenar nessa direção também).

Mas acho que apesar disso, nem por isso deixou de ter literatura interessante (isto é, que comunica *algo*) que foi criada na medida em que essa desintegração foi se acelerando. Dá pra falar de muitos nomes (Carson, Murnane, Ferrante) que fazem mais que um realismo genérico.

Inclusive acho que um dos grandes romances do século XX, ainda pouco falado (“A vida: modos de usar”, do Perec) tá aí para ser ainda discutido pois justamente ele não pode ser lido tão facilmente nessa chave da incomunicabilidade, da simples gestação de um fracasso epistêmico.

Minha pergunta é então o que esses romances fazem do ponto de vista epistêmico? (É uma pergunta que talvez denuncia o ponto de vista fechado de que tou partindo). Pois suspeito que a resposta de que eles simplesmente dão conta de singularidades não é boa.

Acho que isso é uma resposta fácil demais e também condena a uma espécie de solipsismo. Meu maior problema com essa hipótese é que se o que são trocadas são singularidades nenhum reconhecimento seria possível, nenhuma saída de si. Deveria elaborar isso, mas fica pra outra hora.

Por outro lado, também não parecem que eles comunicam a incomunicabilidade, esse momento parece em certa medida estar esgotado e também ser diferente. E quando aparece a gente só consegue ficar meio entediado com essa prosa metida a poética ensaiando >>>o inominável<<<.

Tem ainda as pessoas (escritores) que tentam fingir que o romance realista com suas pretensões de dar conta formalmente das tensões sociais (uma espécie de crítica da ideologia?) ainda está vivo. Os Franzen da vida. Mas a gente pode até gostar de ler, mas sabemos que já deu”.

Fico então perguntando o que sobra? Acho que talvez nem faça sentido essa pergunta, talvez eu esteja preso demais às pretensões auerbachianas. Mas eu realmente sinto que um livro como o do Perec é um bom caso pois parece que algo ali é partilhado, ou eu partilho de algo ao ler.

Ainda sinto que algo é comunicado, que algo se transmite *apesar da desintegração social*. E não apenas um apesar”. Eu diria até que tem algo de bom, que ajuda a mapear coisas, a ter algumas dimensões, ainda que jamais se deva esperar desse tipo de romance a iluminação do todo.


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