September 28, 2020

Comentários sobre rever The Wire

Ontem eu comecei a rever The Wire (num ritmo lento, provavelmente um episódio por semana) e foi como sentir o gosto de uma madeleine.

Muita tinta já foi gasta, mas o que mais me impressiona é como essa série não cede aos recursos fáceis do drama (apesar de personagens MEMORÁVEIS) e insiste em se articular de modo horizontal (sempre expandindo) e não vertical (avançando a trama, que parece andar a contragosto).

Ela é a antitese de uma série como Breaking Bad, que pra mim tem como único mérito (pelo menos quando vi) levar ao extremo o verticalismo narrativo, em que absolutamente tudo que acontece lá faz a trama andar, nada é desperdiçado.

Eu ainda estou no final da segunda temporada, degustando lentamente, mas evidente que Os Sopranos é a síntese dialética dessas duas séries (inclusive o que acontece nas franjas da narrativa do Tony é quase tão interessante quanto ele pois existe uma interdependência forte aí).

E no outro extremo (mas talvez fique ainda no campo da aposta) acho que aparece Atlanta. A segunda temporada de Atlanta faz com Sopranos o que Jordan Peele faz em seus filmes. Uma reversão do horror a partir do político que nem por isso abre mão do aspecto existencial.

Inclusive pra mim Atlanta é uma série que talvez deveria dar pra circunscrever como afrofuturista (mas aí talvez esteja esticando minhas patas em terrenos que apenas derrapo).

Inclusive acho que haveria algo a comentar também sobre o caráter episódico da série, mas de novo, aí teria que pensar como essa escolha formal apenas fortalece certos tipos de experiências que (acho) que Atlanta comunica.

September 23, 2020

Sobre o Nietzsche de Kittler

Lendo texto do Kittler sobre Nietzsche [Nietzsche (1844-1900), em A verdade do mundo técnico]

Mind = blown

De fato fica bem claro via esse texto algo que já aparece em Foucault e Deleuze de outras formas (em leituras de Nietzsche): as análises devem procurar ver a realidade que se apresenta como soluções para problemas (se qualquer ontologia do presente” é o que se deseja fazer).

Ou seja, não olhar para o mundo como se as coisas fossem explicações, mas como se fossem elas mesmas soluções pra disputas e conflitos, para instabilidades, geralmente fruto de forças que se autonomizaram e por isso cairam em conflito.

De certa forma o mistério que se põe a resolver acaba sendo entender quais são as forças que se autonomizaram pra criar as circunstâncias atuais, em que condição se separaram e se estabeleceram contra sua origem a ponto de se voltar contra ela e existir para além dela.

Depois de ler esse texto eu acho que ficou claro pra mim minha preguiça com leituras de nietzsche e metafisica da arte” que abundam por aí. O problema é levarem pouco a sério o caráter fisiológico (e midiático, como mostra Kittler) dessa relação.

De modo que acho que pra retomar esse tema eu apenas diria que a forma interessante é passando pelo viés kittleriano que enxerga tudo em termos de uma história dos narcóticos” e não essa defesa meia boca do dionisíaco e da força criadodara” da arte.

September 21, 2020

Qual o sentido da filosofia?

A verdade é que toda a minha pesquisa” oficial (mesmo que não pareça) é uma tentativa de inteligibilizar porque e como quando leio coisas de filosofia aquilo afeta. Afinal, que diabos o sujeito transcendental teria a me dizer com todos seus infindáveis jargões? E ainda assim…

Cada vez mais, em parte por conta de Platão, em parte por conta de conversas, tenho pensado que os termos são o que menos importam: quer dizer, eles importam como gatilhos para processos em que re-organizamos as formas como nós naveganos entre as inúmeras gramáticas disponíveis.

Mas acho que é difícil. Ainda tem ali uma distância (que sequer consigo nomear direito), mas que parece importante. Pois se consigo entender isso (que conceitos são apenas indicadores), ainda me parece esquisito entender o que eles apontam” e como isso nos transforma”.

Mas assim, e talvez seja importante, essa dificuldade de nomear o ponto inicial da filosofia (algo percebido de modo bem claro pelo Deleuze, sobretudo) é justamente seu solo constitutivo e seu espaço de intervenção. Por um lado ela diz algo sobre o sujeito, sobre situar-se.

Se a gente entende a filosofia como uma espécie de operação que procura pensar a boa vida (que outra vida que posso viver que não seja apenas essa, mas que seja melhor), isso pode ser compreendido como uma espécie de tentativa de se orientar por algo fora de nós.

O problema é que esse algo fora de nós é fora de nós. Ao mesmo tempo é a vida que não temos, que não somos. Por outro lado, e é isso que é esquisito, é a vida que queremos (e sendo da ordem do desejo, não faz parte de quem somos? Deleuze, Platão, Espinosa sorriem).

O que a filosofia mostra em sua atividade (e talvez seja difícil de engolir) é que somos nós mesmos na medida em que não nos conformamos completamente a uma certa autenticidade. Ou melhor, nossa autenticidade está em outra forma de nós mesmos. Daí o ascetismo perigoso rondando.

O que é a filosofia? Eu acho que em alguma medida o discurso filosófico (oral e escrito tem papéis e funções assimétricas — outro papo) é um gatilho que nos força a sair de nós mesmos. Mas não é ele quem produz os elementos estranhos, diria que ele apenas apontaria para eles.

O que tem de interessante na filosofia, e acho que o Maniglier capta muito bem nesse vídeo (https://youtu.be/nI7fNjBmoL0 ), é que ela acontece não quando algo não funciona”, mas quando funciona”, quando apesar dos nossos discursos, a realidade se encaixa de forma surpreendente.

Nesse sentido, diria que há forças que apontam para o estranhamento o tempo inteiro. Que as artes e as ciências, a política e o amor (pra pegar as quatro condições do Badiou) estariam o tempo inteiro produzindo as condições para mostrar como nós excedemos o que somos.

A filosofia acho que funciona como uma tentativa de mapear esses excessos, de costurá-los, de construir uma possibilidade de navegar entre eles (não para reduzi-los, embora isso seja sempre um risco inevitável), mas para nos mostrar que já estamos sendo excedidos a todo tempo.

O que significa que em certo sentido a filosofia não tem muito valor. Não é ela que nos tira de nós mesmos. Não é ela que explora essa distância entre o que somos e o que podemos ser. Podemos passar muito bem a vida sem ela. E ainda assim…

Eu acho que se ela aparece é por conta da inconsistência interna desses excessos. Eles não se fecham, não se harmonizam num total, de modo que se a filosofia tem um papel é simplesmente para nos lembrar que o processos de navegação entre quem somos e o que podemos ser não é reto.

September 20, 2020

Uma lição de reality shows de relacionamento

Uma das melhores dicas que já vi nesses milhares de reality shows de relacionamentos é algo que de fato deveria ser levado pra sociedade como um todo (pelo menos certos nichos que eu frequento): finja interesse, faça perguntas, não fique apenas replicando o outro falando de si’.

Nada mais insuportável com conversas parasitárias. Eu acho que tudo bem falar de si na hora de responder uma conversa. O problema é a coisa sempre ser assim, é você não ter a menor relação com a pessoa e quase esperar a oportunidade para falar algo de si.

September 20, 2020

A ideia platônica no modelo do lacanismo-esloveno

O platonismo talvez pode ser pensado como uma percepção de que aquilo que diz mais sobre nós mesmos não é o que está em nós, mas fora de nós. Daí o esforço de sair da dóxa em direção a ideia. A dóxa é o nosso exterior-interior que bloqueia o acesso ao fora de nós que é a ideia.

É o que vemos sempre no Platão. Sócrates pergunta para todo mundo o que é uma virtude x’. O que é a temperança? Cada um dá sua opinião, mas o que Sócrates sempre mostra é que elas estão sempre aquém do que somos/vivemos/experimentamos. As _nossas_ ideias não dão conta de _nós_.

O que é a ideia? Talvez a ideia nunca é positivada, a sua própria existência tem uma natureza esquisita (investigada nos diálogos tardios), mas o que parece ser constante é que ela é a possibilidade de que o que vivemos/sentimos/experimentamos seja explicável, seja inteligível.

É como se nossas tentativas de pensar >imediatamente< a nossa realidade, nossas questões fosse o que acabasse atrapalhando essa busca, já que aquilo que a gente produz imediatamente é apenas opinião. Daí ser necessário inventar procedimentos para sair de nós mesmos.

Isso aí foi apenas mais um exercício que é mais um teste do que qualquer outra coisa (não importa se concordo’). Tenho tentado pensar não pensando e essa foi uma tentativa de pensar a lógica do platonismo a partir de uma lógica do lacanismo-esloveno elaborada pelo Gabriel Tupinambá.

Continuo pensando nisso, e acho que é por isso que o texto do Kleist sobre conversa (http://periodicos2.uesb.br/index.php/floema/article/view/1728…) é fundamental. Eu acho que quando a gente conversa (se dirige a outro) a gente é obrigado a se explicar de modo que não podemos nos esconder em certas elipses.

E dá pra entender as razões das elipses. Pensar dá trabalho, cansa ficamos com preguiça (o Kant fala disso no início da resposta dele ao que é esclarecimento). Eu acho que é foda mesmo, mas quando tem alguém ali diante de você você tem uma espécie de motivação (afetiva?).

Por isso não acho acaso que Platão escreva diálogos (e um tipo bem diferente, mais natural, que aquele que aparece no helenismo, que mais parece apresentação de posições). Tem um esforço (por mais artificial que pareça em momentos) de mimetizar a gênese impessoal do pensamento.

E por isso também acho que o caráter socializante da filosofia é fundamental. Sem ter relações com os interlocutores acho que a tendência é que se cultive uma comunidade não-generosa, mais interessada em destruir e tirar o tapete debaixo dos outros do que qualquer coisa.

September 20, 2020

A destecnicização da filosofia

Hoje acordei pensando no colega Ludwig (pois ontem alguém falou das resenhas que o Hadot fez dele antes de se embrenhar na nóia dos exercícios espirituais).

Lembrei também de um detalhe que o Ray Monk conta na sua (fabulosa) biografia, mas que não sei o quanto é verdade, já que meu conhecimento do Wittgenstein é amador: mas ele fala de uma espécie de simplificação progressiva de algumas críticas que ele fazia ao longo da carreira.

Na verdade pode ser tudo coisa da minha cabeça, mas lembro dele falando que nas discussões do Witt com matemática que as críticas que ele tinha nesse campo elas foram ficando cada vez menos críticas de especialista (no início pareciam ser internas e depois viraram externas?).

Enfim, o que me pescou foi isso, essa des-tecnicização da filosofia. E é algo que tem me atraído, embora não sei como pensar isso abrindo-se mão de uma paixão pela minúcia (pois acho que filosofia é em parte isso: paixão pela minúcia).


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