August 8, 2022

Uma análise de O Ensaio de Nathan Fielder

Nas últimas semanas estou escrevendo mentalmente um texto sobre The Rehearsal” e a natureza desconstrutiva de seus procedimentos.

Deixando de lado as questões éticas ali (e acho que há), o que vejo é uma espécie de investigação que ao tentar resolver um problema (que aparece no primeiro episódio) passa a ir em direção à própria condição de possibilidade do que se quer inicialmente representar.

Só que esse movimento investigativo não se dá no plano teórico ou simbólico. É como se cada passo da série fosse uma tentativa de fornecer uma resposta em termos infraestruturais das condições de possibilidade da encenação que se pretende.

A gente vê inicialmente uma ideia simples de representação. Representar os passos. Mas identifica-se um problema, essa representação captura apenas o instante”. Ela busca repetir uma situação única. No episódio seguinte isso se expande: representa-se a passagem do tempo.

A passagem da primeira representação para a segunda, implica numa ampliação da infraestrutura (além de não se poder replicar muitas vezes a situação, pois busca-se representar 20 anos), é necessário inventar uma forma de simular uma coleção de situações que seria uma vida.

Acho que nesse ponto que abrem-se dois problemas que me parece que são tratados” nos dois episódios seguintes. O primeiro diz respeito à natureza das representações. Se você não está engajado naquela ficção, você precisa encontrar uma forma de transmitir as emoções.

O que parece se descobrir no terceiro episódio, é que para fazer isso, a própria forma do ensaio” se mostra limitada, ela não consegue reproduzir o afeto das situações. Daí, mais uma vez, a extrapolação do ensaio” para além de um domínio em que se está consciente do ensaio.

Algo muda ali. Pois vê-se que a verdadeira simulação parece implicar em alguma medida uma fragilização da fronteira que torna ainda mais eticamente questionável o experimento (se é que a gente acredita que aquilo tem algo para além da encenação).

É claro que já havia esse problema no primeiro episódio, mas no terceiro parece que ele explicita o que estava apenas como uma possibilidade: a ideia de que no ensaio já há elementos de que aquele que ensaia não faz parte, não tem controle e é excluído do processo.

Mas no quarto episódio isso me parece ser levado ainda mais adiante, pois parece que o ator que vai praticar o método fielder” sequer é um participante ativo”. Um efeito, me parece, da necessidade de ampliar a escala do que é ensaiado” nos procedimentos do Fielder.

Na tentativa de ensaiar uma vida, a quantidade de pessoas que precisa participar da encenação se multiplica enormemente. Além disso, fica-se evidente que a capacidade delas atuarem bem no ensaio está condicionada a elas mesmas serem capazes de elas mesmas serem já ensaiadas”.

Para que o ensaio consiga realmente simular a vida (sobretudo nas ocasiões em que ele as fronteiras entre o ensaio consciente e o inconsciente) seria necessário que os atores que participam jamais dessem um sinal de serem artificiais.

Isso põe em questão o problema da mão de obra, da formação de um profissional para esse tipo de atividade. De um tipo específico de técnica de atuação que não existe para um tipo de atividade que inclusive nunca existiu fora desse programa.

Pois o tipo de atuação que aparece ali não é uma que é para encenar numa apresentação”. Pelo contrário, é uma em que a própria pessoa vive a atuação, em que ela se tornaria indistinta pela própria capacidade da pessoa se incorporar totalmente nessa outra vida.

Temos um problema aqui. É totalmente impossível e me parece justamente isso que acontece no episódio quatro. É como se o Fielder levasse as últimas consequências sua proposta e isso resultasse nele ter que tornar os futuros atores eles mesmos em ensaiadores” involuntários.

E agora a gente tem uma espécie de retorno involuntário ao que acontece no primeiro episódio. Lá o próprio Fielder ensaia a situação. Mas como se tratava de um caso simples, é uma questão de ir testando uma situação. Ele não vira Kor Skeete.

É diferente do que ocorre no quarto episódio, em que ele vai seguindo cada passo do ator que faz parte de sua oficina, inclusive a ponto de assumir a tarefa que ele mesmo havia dado para esse ator na oficina de atuação do fielder method.

Para além disso não sei ainda o que pensar (fora esperar o fim da temporada). Mas acho que não é por acaso que ele se obrigue a encenar dramaticamente” a substituição de atores que permite a criança voltar à infância. Acho que de alguma forma se relaciona com esses passos acima.

Eu suspeito que há uma percepção nesse momento de que para que o ensaio seja efetivo, a encenação deve recobrir tudo. Isso inclui as dúvidas do criador”, que são tão espontâneas quanto falsas, como também modificações em infraestrutura (o recuo temporal do quarto episódio).


Previous post
A crítica de Sérgio Ferro às teorias da arte representativa Um dos momentos mais interessantes do livro do Sérgio Ferro no “Artes Plásticas e Trabalho Livre II” (e que retorno vez ou outra na memória) é a
Next post
A gravitas do discurso filosófico francês Eu tenho a impressão que o sucesso de uma filosofia francesa tardia (Latour, Badiou, Stengers, Zizek [francês por formação]) está ligada a produzir