August 10, 2019

Sobre uma esfera pública constituída a partir de um conjunto de eus”

Tem dois dogmatismos que contaminam a esfera pública atualmente (tipo nas redes) que acho que podem ser problemáticos (o que não significa uma recusa absoluta, justamente, dogmatismos tem algum valor): 1) um dogmatismo do saber técnico e 2) um dogmatismo da fetichização do eu.

Um: a fetichização do saber técnico. O saber de uma determinada área. É dogmático na medida em que aquilo procede, que não é vago e que tem alguma validade. Mas é problemático esse dogmatismo pois na maior parte das vezes ele vem acompanhado de generalizações indevidas.

A pessoa não se satisfaz em falar do que aquele saber autoriza, é preciso ultrapassar as fronteiras desse saber e de certa forma produzir um discurso que acaba sendo autoritário (pois se na esfera específica ele tem validade, quando ele sai ele não se justifica da mesma forma).

Dois: o segundo tem a ver com uma certa naturalização das perspectivas como se a sua afirmação bastasse. Acho que gente vive num momento em que a massificação dos meios de comunicação permite que novas vozes sejam escutadas. Isso é fundamental, amplia e altera os termos do discurso

A força de certas posições identitárias está em trazer para o campo discursivos coisas que sequer eram consideradas, que na maior parte das vezes não eram vistas e quando muito eram recalcadas. A questão que acho que surge como perigo desse tipo de dogmatismo é uma suficiência.

E acho que os efeitos piores estão longe de serem em posições identitárias (na verdade, é nelas que vemos os efeitos melhores, o que há de potente nesse tipo de dogmatismo), mas justamente numa certa cultura que fetichiza a perspectiva justamente por ser perspectiva.

Não é surpreendente que os problemas desse dogmatismo aparecem mais justamente na perspectiva de grupos historicamente dominantes (homens, brancos, heterossexuais, classe média, cis, etc etc). A fetichização do eu’ acaba servindo como desculpa pra se retirar da esfera pública.

Eu ainda tenho dificuldade de articular o que quero dizer, então peço um pouco de paciência com esse ponto. Mas tenho a impressão que esse foco no pessoal, no eu, na minha posição’ acaba (direta ou indiretamente) contaminando a possibilidade de uma esfera pública.

O que eu vejo é a criação de públicos identitários. Onde isso me deixa mais com medo é em um certo universo de YA. Nada contra YA. O que me incomoda é como algum desses universos (penso nos irmãos Green) a identificação” é um dos motores principais. Trata-se de se encontrar’.

E é muito bom se encontrar, é muito bom poder confiar no seu ponto de vista, encontrar um espaço que não é meramente uma limitação, mas uma condição positiva. O problema é que a coisa acontece de tal forma que o aspecto narcísico é que parece dominar. A identificação é crivo.

E bem, quando a identificação é crivo acho que isso prejudica qualquer forma de espaço público, pois ele implica justamente um contato entre posições diferentes sem qualquer apelo a um conceito unificador. Esse me parece, ao menos, o desafio.

Uma outra consequência que vejo disso é que se há esse desejo de identificação particular, no fim das contas acaba emergindo não apenas aqui e ali nichos que se alimentam e sobrevivem a partir da sua capacidade de acolherem pessoas que se identificam, mas uma certa cultura geral.

O próprio procedimento da identificação, do apelo ao eu, de valorização de qualquer especificidade acaba virando um procedimento que transcende nichos particulares. Trata-se de um mecanismo de preservação que atravessa o campo discursivo?

É como se as coisas pudessem ser valorizadas não mais apenas pelos nichos (o que continua), mas também por, de um modo mais geral, independente da identidade específica, uma arte que quer valorizar ~o eu. Que quer elevar essa experiência cotidiana a algo que vale por si mesmo.

Esse movimento não é novidade. O (santo) Auerbach consegue traçar bem esse caminho na evolução do romance, uma certa valorização do individual. Mas ali o individual acaba tendo uma outra função (e isso ainda mais se considerarmos o pathos do Sermo Humilis que guia o nosso herói).

O que acho que tou tentando falar é um pouco diferente pois não há uma ética do apagamento. É uma ética da suficiência dessa posição. E o que a gente vê? Egos, a gente vê as pessoas só se prendendo nas suas posições apenas com gestos ilusórios de comunicação. (meu pessimismo?)

Claro, eu também tenho uma posição forte nesse jogo. Vocês sabem. Acho dogmatismos tendencialmente perigosos se não forem dosados por ceticismo e hesitação constante (daí minha apologia à Contrapoints).

Acho que por isso o cuidado de si talvez deva ser lido dessa forma. Não apenas como uma valorização de si, um esforço por se cultivar. Mas também uma espécie de toma cuidado com o Si”.

p.s.: a coisa ficou um pouco desequilibrada pois acho que boa parte das críticas aos dogmatismos do saber técnico aparecem de alguma forma em Platão (e vocês sabem, eu não calo a boca sobre ele): sobretudo Cármides e Mênon (mas República também, claro, na problemática do Bom).


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Sobre orientadores Um mito que eu vejo circular muito é essa ideia de que o melhor é “que ao menos o orientador não encha o saco”. Eu já tive essa postura e hoje acho