October 28, 2020

O descompasso entre tempo de produção de um texto e seu valor

Existe uma ideia que vejo muito (que imagino que tem a ver com a lógica capitalista) que um texto (ou uma obra, um produto qualquer) tem que ser trabalhado” no tempo”. Tem que ser constantemente produto de um cuidado que quanto mais demorado mais seria valoroso.

Então se você faz um texto rápido isso é mal visto, não pode ser admitido. Inclusive acho que até acaba-se criando um jogo de aparências para esconder quanto tempo demoramos para escrever um texto. Demorar tempo demais é sinal” de que fizemos menos que podíamos.

Se demoramos tempo demais, por outro lado, seria um sinal de que somos improdutivos, que se a coisa não está incrível é por uma fraqueza nossa. É engraçado como isso acontece.

O problema é que essa situação na prática da leitura se revela ilusória pois avaliamos sem saber isso.

O que fico pensando é que ainda que a gente sinta que essa coisa do tempo (na hora de produzir) é algo importante (daí as dicas para deixar o texto maturar — ou seja, temporalizando e ampliando seu valor) fico me perguntando se isso não é se concentrar no trabalho vivo do texto?

O que acho curioso é que quanto mais você escreve mais você aumenta o apoio num trabalho morto. É como se você se apoiasse num tempo que não gasta tempo, que permite você fazer certas coisas mais rápidos sem que desvalorize o produto, sem que ele seja menor por isso.

A menos que se revele isso, nesse caso, o receptor, mesmo que tenha gostado do texto pode se sentir fraudado de alguma forma (imagino que tou entrando no território do livro da Ngai sobre GIMMIKCS). É esquisito isso, né. E claro que o apoio no trabalho morto pode gerar problemas.

Se você tá cada vez mais se apoiando em coisas antigas, é bem capaz que você acabe se tornando repetitivo (o que nem sempre é o caso e, principalmente, nem sempre é ruim). Mas o outro lado também rola um problema pelo inverso né? Pois tem textos que não adianta mais trabalhar.

Se o valor vir apenas de quanto tempo você gasta no texto, pode acontecer como quando a gente passa demais uma carne. A gente até sintetiza, suga tudo. Mas aí o que fica é uma merda? E as vezes a gente faz isso por vergonha de chegar rápido demais ao resultado?

Acho que essa questão fica bem mais interessante se a gente pensa no trabalho de alguém tipo o Cesar Aira. Sua obra são apenas procedimentos e ele lança umas 4 novelas por ano faz décadas. Com certeza ele escreve o livro em si muito rápido pois o trabalho está no procedimento.

A genialidade do Aira é em parte perceber que não adianta ficar simplesmente laborando um texto, sobretudo quando já fizeram (ele leva isso radicalmente a serio). Sobra pra ele criar procedimentos que de fato tem ar de truque que poupa tempo.

Pois uma vez criado o procedimento, basta ser fiel ao procedimento (ou seja, o trabalho, o LABOR SOBRE O TEXTO) é relegado ao procedimento. O autor em si apenas fica de boa e segue as instruções, de certa forma (se mantendo fiel a elas independente da qualidade).

Com isso ele consegue jogar fora toda essa balela de que um bom texto é um texto trabalhado. Claro que isso pode ser bom, mas tem tantas outras formas que um texto pode ser bom que inclusive boa parte das novelas do Aira só podem ser umas merdas (é inevitável escrevendo tanto).

E se elas podem ser ruins, chatas, e ainda assim ele ser genial é porque de alguma forma ele conseguiu deslocar o ponto da qualidade de um texto, o seu valor (e bem, tou usando os termos de forma vaga e equívoca) de qualquer cuidado >no tempo< do texto. Ele libera outros valores.


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