September 29, 2020

Comentários a partir de Ética do real” de Zupancic

Eu tenho uma hipótese, que ainda preciso trabalhar melhor, mas tem a ver com o livro da Zupancic sobre Kant, Lacan e a Ética do Real. O que é interessante ali é que justamente o momento ético não é o momento em que fazemos um bem’, mas que assumimos a nossa liberdade.

O problema do bem aparece exatamente na maneira como agir pelo bem’ já convida a questão subsequente de um bem pra quem?’, o que já nos joga num jogo infinito de determinar qual bem é o melhor, porque etc (enfim, isso são questões preliminares e não essenciais pra hipótese).

Diante dessa impossibilidade de agir em nome de um bem, então, a ética kantiana seria uma ética pautada no dever, ou seja, numa espécie de fórmula vazia que na leitura da Zupancic não é nada mais do que uma espécie de aceitação das implicações da sua liberdade.

O que isso significa? Que por mais que os sujeitos possam ter sempre suas ações explicadas por inúmeras causas (enquanto conhecemos’ as causas), para Kant/Zupancic essa determinação das causas jamais pode ser absoluta, haveria uma inconsistência que travaria a determinabilidade.

A Zupancic pensa essa inconsistência a partir do bon mot lacaniano de que não há outro do outro” (que ela traduz como um não ha Causa das causas”). Mas isso pode ser observado se a gente pensa nas antinomias sobre a possibilidade de uma determinação total (fechada) das causas.

O ponto é que, por mais que eu consiga enumerar inúmeras causas, eu jamais conseguiria dar uma determinação completa e total das minhas ações. Sempre ficaria um certo buraco, uma inconsistência. É aí que se veria a possibilidade de um sujeito livre, que age sem causa.

O que isso significa pras ações éticas? Que agir éticamente não seria agir de acordo com um bem já que isso seria abdicar da minha liberdade em nome de uma finalidade que funciona como mais uma causa entre outras causas, de modo que recairia na dificuldade de avaliar qual bem’.

Agir eticamente, ou seja, agir de acordo com um dever, significaria então agir independente de qualquer bem. Isso é difícil, ainda mais no que implica, pois como podemos ver isso? Como podemos imaginar isso como possível? Acho que isso é uma das dificuldades mesmo.

E é uma dificuldade ainda maior quando a gente pensa na maneira como as vezes (como Zupancic nota) perverte esse agir por dever’ em nome de algum outro bem (como, por exemplo, contamos uma verdade dolorosa a um inimigo com a desculpa de que é por dever à verdade’).

Porque isso seria uma ação não-ética? Pois abre-se mão da liberdade e se escolhe se portar e agir como se fôssemos determinados de modo fatal (algo que a inconsistência aponta como sendo falso). Não conheço Sartre, mas a palavra má-fé fica gritando no meu ouvido.

Certo, agora posso chegar na minha hipótese. Pois a ação ética diz respeito a um tipo de ação em que se assume a sua liberdade no ato. Isso significa aceitar também que não existe almoço grátis (haha), o que significa que toda ação que fazemos vai sempre ferir o bem de alguém.

E isso acontece pois é impossível agir sem gerar efeitos, também é impossível que esses efeitos se acumulem e sigam direções diferentes das nossas intenções. É por isso que Kant/Zupancic vão tentar desconectar a ação ética dos seus bons efeitos (pois de novo, bom pra quem’?).

(Tem toda uma discussão sobre como é que se age de acordo com o dever, como se age livremente, se estamos também vivendo num mundo comprendido a partir da causalidade. Tem uma discussão sobre como a ação livre se inscreve nas redes causais que não abordarei aqui)

O que quero pensar, na verdade, é como Édipo, em Édipo Rei, talvez seja um caso exemplar de uma ação ética. De alguém que mais que qualquer outra pessoa evita a má-fé de se apoiar em desculpas, de se apoiar em boas intenções (com um bem’ em mente), que evita passar pano pra si.

Pois uma das formas de passar pano pra si é dizer: Mas isso não era minha intenção. Não estava no meu controle. Isso estava para além das minhas capacidades.” E tudo bem, eu também faço isso (eu não sou o Édipo), mas isso é uma forma de não assumir seu envolvimento nas coisas.

Acho que uma coisa que acontece muito é que quando as coisas saem do nosso controle a gente costuma dizer Poxa, mas isso era bem distante do que eu imaginava” [um clássico: mas nunca houve socialismo/liberalismo real’]. O que é uma forma de não aceitar que ações tem efeitos.

E tudo bem fazer besteira” (não em todas as circunstâncias, veja bem). Mas não aceitar que os efeitos nem sempre concordam com as nossas boas intenções e que, inclusive, as coisas se deram na direção oposta do que sonhávamos é não aceitar que nós estamos envolvido nas coisas.

É como querer um passe livre. Sim, eu defendi algo, mas se esse algo saiu do meu controle é sempre por razões externas, é porque cooptaram, é porque se opuseram, é porque não seguiram tin-tin-por-tin-tin minhas ordens. Mas o que é isso senão assumir uma heteronomia?

O problema é que se há uma inconsistência, então de fato o mais duro é aceitar que as situações, mesmo as que são mais fora do nosso controle, são também, em certa medida, responsabilidade nossa. Não responsabilidade nossa como agentes causais, mas por estarmos envolvidos.

Voltando ao Édipo. Qual o seu crime? O seu crime foi que os seus pais interpretaram mal uma profecia? Expulsaram ele de casa e ele foi criado em outro lugar. Depois ele matou um cara que de fato deve ter sido meio escroto com ele na estrada.

E o casamento com Jocasta? Bem, eu sempre penso nisso, mas não lembro de ter nenhuma indicação de que ele sabia que casava com a esposa do homem que ele matou (e muito menos sua mãe). Então de novo, qual a culpa de Édipo nessa situação? O que ele fez de errado enquanto agente?

Se tem alguém na história da literatura que poderia simplesmente falar ah tomar no cu seus filho da puta, como que eu ia saber dessas merdas??? vsf deuses babacas” é ele. E ainda assim, o que ele faz? Ele fura a porra dos olhos. Ele se responsabiliza por tudo que não foi ele.

Acho que pra mim isso é um puta exemplo dos extremos de alguém que assume sua responsabilidade e rejeita qualquer má fé, que rejeita se apoiar em causas externas e que se implica no que está ali (mesmo diante de efeitos nefastos que ele poderia recusar).

Mas claro, ainda falta uma parte. Pois o que significa esse envolvimento? O que essa ação completamente causada à revelia dele diz sobre sua liberdade? Acho que diz que a liberdade dele não está no fato de ele determinar ou ser determinado por x ou y.

A liberdade do Édipo estaria na sua própria disposição. A maneira como ele se relaciona com as causas, o fato de que ele se deixou de certa forma acreditar que nada daquilo era de responsabilidade ninguém, foi também o que acabou deixando ele se enredar cada vez mais nisso.

Mas em alguma medida aí que estaria a escolha dele, de se deixar ser determinado por desejos, por interesses, por coisas que em última instância não tem uma garantia qualquer, já que há sempre uma inconsistência que ronda. O drama dele pra mim tem tb a ver com se dar conta disso.

Se Édipo é pra mim um personagem que ilustra uma face da liberdade, é por ele se dar conta numa situação em que ele poderia usar de tudo como desculpa para ser não afetado, que ainda assim ele sente que tudo aquilo é também uma escolha dele, mas uma escolha em outro nível.

E aqui a gente poderia até costurar o que se vê ao longo da peça, a soberba do Édipo, sua arrogância, sua pose de salvador. Sim, ele não escolheu matar O PAI ou casar com A MÃE, mas essa sua disposição sempre foi uma escolha dele, eu acho.

Por isso que a Zupancic vai sublinhar esse elemento quando fala de como a ação livre aparece no mundo a partir justamente das máximas que são incorporadas e que servem como orientadoras para as ações. Ou seja, seguir os interesses também é uma máxima (problemática) incorporada.

Até agir de acordo com um bem é, de alguma forma, negar a nossa liberdade, pois é não-nos responsabilizar (“estou fazendo isso por x’”) pelos nossos atos. E de fato eu acho isso muito difícil, não surpreende a Zupancic o tempo inteiro marcar o caráter inumano da ética kantiana.

Porque eu tou pensando essas porras? Acho que uma das coisas que mais acontece é justamente o gesto de desresponsabilização (e por razões que de fato são muito ponderadas). O problema, e acho que toda essa discussão Kant/Zupancic levanta, é que isso é uma auto-ilusão.

O Édipo seria portanto uma espécie de contraponto. Ele teve todas as razões pra abrir mão do seu destino e ainda assim, quando ele de fato se vê diante de uma rede de implicações que o excede, o que ele faz é aceitá-la e tomar para si.


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