May 10, 2022

As socializações da filosofia universitária nacional

Contemplando se valia a pena ir ou não à ANPOF esse ano eu concluí que a irracionalidade do campo institucional da filosofia na conjuntura universitária atual somado ao meu percurso específico no campo tornam inviáveis minha participação contínua nesse campo.

O campo é conposto por uma série de práticas de socialização entre os pares que os tornam reconhecíveis entre si (formação, trocas acadêmicas, participação em congressos, escritas de artigos). Todas essas práticas são avaliadas explícita ou implicitamente nos processos seletivos.

Esses processos não são homogêneos. Cada processo seletivo pesam a mão sobre alguns elementos específicos (se você é produtivo, se as pessoas da banca [sem má fé ou corrupção] conseguem ler seu perfil profissional, se você tem uma erudição visível e organizada etc).

Esses processos são importantes pois o acesso a uma emprego é que permite que o profissional consiga continuar no campo. Asim, trata-se da forma que a própria instituição filosófica reproduz a si mesma (inclusive por meio de uma seleção dos traços reconhecidos como relevantes).

Isso não me parece um problema em si. Acho que é natural que todo campo acabe construindo voluntaria ou involuntariamente o conjunto de procedimentos que elege a imagem que esse conjunto/campo quer ter de si (ainda que ele possa se surpreender com os resultados).

A questão é que esse conjunto não é homogêneo. Há interesses conflitantes que tornam ele mais aberto e permeável (ainda mais quando aparece uma reflexividade política sobre o próprio campo, sobre seus fechamentos). Isso permite ele ser mais aberto à mudanças que o re-estruturem.

O campo da filosofia, como falei, é composto por aqueles procedimentos que cultivam” os pares, formam suas subjetividades. Esse campo, porém, não se estabelece num vácuo. No Brasil ele é ligado a uma série de procedimentos que estruturam o acesso à burocracia estatal no país.

Isso faz com que certos procedimentos que estão em vigor não respeitam a lógica do campo, mas ao conjunto maior no qual esse campo se inscreve e que nem sempre tem os mesmos interesses que os do campo (mesmo que lá dentro os interesses sejam variados).

O efeito, como sabemos (e como a @thairw comentou sobre concursos) é que além das regras internas, os postulantes ao campo precisam se adequar à regras externas que acabam muitas vezes diminuindo o pool” de candidatos ao campo. Torna-se caro fazer parte desse campo.

Não cabe entrar no mérito do porquê das regras desse conjunto maior rerem sido estabelecidas (como as demandas de idoneidade” que muitas vezes parecem produzir mais problemas que soluções), mas apenas verificar que isso produz descompassos.

Isso cria um impasse, pois entrar no campo, permanecer nele, acaba dependendo de elementos internos ao campo e externos. E cada uma dessas demanas vai se tornando cada vez mais pesadas e tornando o cálculo sobre a capacidade de permanecer no campo mais difícil.

Além de avaliar se você cumpre os requisitos internos, é preciso cumprir os requisitos externos. Claro, isso é algo que parece pouco, mas a questão é que os requisitos externos geralmente se traduzem por uma capacidade de você se bancar financeiramente enquanto não está dentro.

As necessidades de viajar, de pagar por hospedagem, de ter tempo de estudarem para dar conta de demandas impossíveis dos concursos públicos (como a estrutura de sorteio, que é algo que vem de fora do campo, mesmo que por status quo) vão criando uma situação contraditória.

Você precisa ser capaz de já se bancar para poder continuar a reprodução dentro do campo. Sabemos o que isso acaba selecionando na maior parte das vezes né. Bem, nessas horas então o cálculo começa a cada vez menos valer a pens, já que você começa a ter um custo pra entrar.

Num momento em que os recursos apertam, isso torna ainda mais complicado, já que a ausência de financiamento faz com que apenas as posições mais consolidadas de dentro do campo tenham força para se instituirem como demandas. O campo se torna mais homogêneo.

Na prática isso significa que os critérios internos se tornam mais inflexíveis, os candidatos precisam cumprir todos os requisitos e (imagino que na média) os perfis vão se homogenizando. Isso é um problema na medida em que nem todos os candidatos atendem integralmente ao campo.

O que isso significa na prática? Que pessoas mais desviantes da norma vão ter mais dificuldade de ingressar no campo. Quem atende apenas alguns dos requisitos fica na berlinda pois supunha que era possível contar com uma certa variabilidade dos processos seletivos.

Mas isso não é uma régua de qualidade. Quem tá fora e quem tá dentro não me parece pior ou melhor. Tratam-se apenas de percursos singulares diferentes que são mais ou menos reconhecíveis como pertencentes a um campo. Quando o acesso diminui, quem tá mais longe se fragiliza.

O campo vai ficando mais rígido como consequência e sabe-se como isso até cria um perigo para sua perpetuação. A ausência de novidade estagna e torna tudo apenas mais do mesmo (não acho que estejamos aí, mas há um risco).

Ainda assim, essa situação, esse conjunto de limitações me parece que exigem de quem vai participar do jogo que reflita sobre sua posição, sobre seu percurso, sobre suas escolhas (e o que tá implicado em cada escolha para além das decisões imediatas).

As vezes não se quer participar do campo de tal forma, algo duro de admitir (e por isso você nunca se importou de socializar tanto, ou de construir uma erudição ou seja lá qual o elemento que você preferiu deixar de lado por voltar sua atenção para outras coisas).

Essa avaliação é difícil pois além de pessoal e singular (cada pessoa sabe do seu percurso e ninguém ganha estrelinha por ser mais ou menos legível no campo), ela implica se deparar com contradições no seu desejo, no que você quer, onde você quer ficar.

Em algum momento é preciso assumir o que se escolheu (e que esteve escolhendo). No meu caso trata-se de ver que cada vez menos a carreira acadêmica estrita” faz sentido (o que não significa abandonar tudo, pois as coisas não são simples, mas regular as ênfases e prioridades).

Isso não tem a ver com ser melhor ou pior (repetindo pra mim mesmo para afastar tanto a insegurança quanto o narcisismo), mas com entender as condições em que as instituições se desenvolvem e sua capacidade de se relacionar com elas. Até quanto é possível ceder sem se ceder?

Até um tempo atrás esse cálculo fazia sentido pra mim (compensar meu desejo com o que acho que a academia exige de mim ao ser capaz de atender algumas das demandas específicas). Hoje as condições mudaram e sinto que teria que abdicar de mim mesmo de forma que não consigo.

Considerando que há também nessa equação um custo pra jogar o jogo (como a dinâmica paga dos concursos evidencia, mas não só isso), não me surpreende que cada vez menos esteja disposto a tentar coisas. Simplesmente tem feito cada vez menos sentido.

Nada disso sem sofrimento, claro, não só pelo desejo de ter um trabalho, mas também pela alegria que é você ser reconhecido pelos pares (institucionalmente, já que pessoalmente me sinto reconhecido graças a deus). Assim, não é algo que você deixa de desejar da noite para o dia.

Mas enfim, não tem muito o que fazer né? Chega uma hora que você cansa de dar murro em ponta da mesma faca. Ainda que isso não se traduza em sucesso, é bom conseguir encontrar outras facas para bater para variar um pouco.


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