May 9, 2022

O impacto da leitura de Platão

Escutando Cavell e pensando como tudo mudou bastante na minha cabeça nos últimos quatro anos. De certa maneira a leitura que fiz de Platão entre 2019-2021, depois do fim da tese, foi algo que me ajudou a construir outra relação com a filosofia de uma maneira muito doida.

É como se depois de todo um percurso institucional (certamente apressado, emendado, por necessidades de trabalho) essas leituras tivessem criado uma distância, um antes e um depois, entre como me relacionava (me relaciono) com esse conjunto de textos chamados de filosofia.

É algo muito esquisito, pois é como se de repente (embora sei que não foi algo nem de imediado e nem total, visto que alguns tiques permanecem) uma série de coisas do campo se mostrassem irrelevantes, desnecessárias, exageradas e até desviantes do que queria fazer.

Claro que isso não foi novidade total. Muita coisa já era cansativa, muitas coisas eu já não tinha disposição pra fazer. Mas depois dessas leituras é como se outra vida tivesse começado e eu sentisse que não precisasse aguentar essas coisas cansativas.

Mas isso não foi tudo, pois a experiência não foi apenas de ordem negativa. Se fosse eu acho que não haveria distância, apenas um ressentimento ou uma amargura (que certamente existem, já que é impossível eu não ter me amargado com o que aconteceu nesses últimos anos).

Em alguma medida é como se também eu passasse a conseguir ver as coisas, ver problemas, ver ideias e conceitos de uma forma nova, fresca, como se fosse uma primeira vez que eu finalmente fosse capaz de ter calma e paciência para apreciar o que e como esses textos fazem.

E nessa hora o que vi e passei a ver (e que acho que em alguma medida é o que persigo, o que tenho buscado, ainda que com altos e baixos, com desvios inúmeros pelo caminho) é um certo impulso de organização e ordenação das próprias ideias, dos conceitos e das conversas.

É como se ficasse mais claro (em um sentido existencial de sentir, sim, agora vejo!”) que em muitos momentos o que interessa é menos entender qual doutrina”, qual filosofia” é a melhor, a mais adequada”, a mais precisa” e sim conversar e costurar algo que produza sentido.

É por isso que eu sempre volto pra uma certa passagem do Mênon em que Sócrates explica o que é a dialética. Trata-se da arte de conversar com amigos a partir do que eles já compartilham. Conversar para construir e entender o mundo que os cerca, para mapear suas distâncias.

Foi isso, esse movimento (de certa forma apresentado de maneira inocente, leve, serena!) que a leitura de Platão me fez descobrir.

O engraçado é que esse movimento também tem tido como efeito aprofundar a minha crise com a filosofia. É evidente que boa parte da minha crise tem a ver com a questão do mundo do trabalho, com as dificuldades de me inserir (e realizar expectativas cultivadas em outra era).

Mas não acho que é só isso. Se fosse só isso com certeza a minha amargura teria me dominado completamente (não digo que ela não esteja bastante avançada, pois está!). Acho que há também um deslocamento de ponto de vista que deixou mais visível meus desconfortos com o campo.

Desconfortos com não saber meu lugar, com ter dificuldade de saber o que fazia, com me sentir de alguma forma sempre à deriva, sem entender bem pra onde ir e com um medo terrível de que eu estava sendo uma pessoa volúvel (de que ler várias coisas significasse ser volúvel).

Acho que nesses últimos anos, esse outro ponto de vista tem me ajudado a entender também que existe um campo. Que existe um conjunto mais ou menos aberto do que é a filosofia, como uma estrutura (como muitas outras) que produz seus reconhecimentos e estranhamentos.

E o que tem sido pra mim bom (ainda que me causa medo) é me reconhecer cada vez no lado de fora dessa estrutura (algo que acho que é importante sobretudo dado a dificuldade do campo em termos de trabalho).

Mas não acho que se trata aqui de um fora heróico” no sentido de eles não me reconhecem” (embora claro, haja sim um desejo de reconhecimento, de querer participar, ser como, estar junto). Acho que é algo mais, insisto, sereno, mais tranquilo, mais de estar em paz comigo.

Foi só com o passar dos anos (desses últimos quatro) que pude ir percebendo que as escolhas dos últimos 14 anos (incluindo esses quatro) já eram em alguma medida uma escolha pelo caminho que tenho tomado e que tomo as vezes com muito medo por conta das incertezas que o cercam.

O que significa aceitar (com o lado bom e o lado ruim) que tem certos limites que não estou disposto a ceder (que não estive, e por isso me encontro aqui). Talvez em uma outra janela histórica (de quando comecei esse percurso), seria possível, mas agora vejo que não.

Quer dizer: agora vejo que uma certa janela histórica (uma certa perspectiva de promessa do começo dos anos 2010) teria me permitido continuar vivendo uma certa desilusão de que pertenço a um campo que não desejo tanto estar junto a ele.

O que é estranho pra mim, e que acho que ainda embola as coisas pra mim, é que esse campo é também o campo responsável por cuidar, cultivar e reproduzir esses textos que tem sido a minha paixão pelos últimos 14/15 anos, que tem sido um dos centros da minha vida.

Então talvez seja mais nesse impasse que eu me sinta agora. Um pouco mais tranquilo como me ver ao lado” da filosofia. Como entender que certamente não vou contribuir com esse campo da forma como ele se organiza atualmente, como ele respira e se desenvolve nesse momento.

E, mais importante, entender (e isso demorou e por isso doeu tanto ao longo dos anos) que não é da ordem dos meus desejos isso (mesmo que consiga um emprego, pois não é sobre isso! — e inclusive muita gente que admiro e acompanho me parece se encontrar exatamente nessa situação).

Talvez seja um problema menor, um problema mais bobo buscar saber como lidar com esses textos estando ao lado” (o outro também era, mas eu sou lento e acho que também existe uma distância enorme entre entender na ordem das razões e entender na ordem da existência, digamos).

Ainda assim acho que é o problema que me ocupa agora, que me tem, aos poucos, me deixado mais animado (ainda que muita coisa ainda alimente a amargura, a tristeza e o cansaço).

Por isso que acho que agora me vejo perguntando: como ocupar esse espaço ao lado do campo sem ser dominado por um ressentimento? Como lidar com essas coisas sem recair tampouco numa postura heróica, de reproduzir a história de uma pensamento marginalizado” (não é dessa ordem).

Se isso parece um problema menor, ou talvez muito específico, é porque em alguma medida essa questão se relaciona (aos poucos vejo) com meu desejo por amizade, por conversa, por criar laços. Ou melhor: trata-se da maneira como sou levado a pensar esses temas e desejos.

Mas enfim! Não é algo que acho que vá conseguir responder por agora pois, mais uma vez, não é algo dar ordem dos argumentos”. Ainda acho que vou precisar quebrar bastante a cabeça no percurso (e também me machucar e me alegrar) até poder entender como isso vai se desenrolar.


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