October 12, 2020

A voz e a fala no podcast

Acho que dá pra falar bastante sobre os temas que o @toujourmicelio tocou no seu podcast (e que espero que ele não deixe de fazer), mas o que eu acho que tem mais interessante ali é justamente que ele toca o episódio como uma experimentação a partir da dinâmica da voz e da fala.

Acho que isso é importante, não apenas como ideal, mas como prática mesmo. Se a gente olha o >campo< de podcasts (pelo menos no espaço >progresista<) a gente tem alguns modelos standards: mesa-redonda, formatos narrativos e os que são meio react (a partir do material do público).

Os que tem um formato narrativo eu acho que tendem a ser mais interessantes, sobretudo quando bem produzidos, mas ainda assim, nada de novo sob o sol. Incluiria aí também alguns educativos que tem sua força justamente por serem bem produzidos (como o A history of philosophy”).

E acho que o interessante desses trabalhos tem a ver com um planejamento meticuloso, com uma reflexão sobre o que se quer fazer, uma delimitação da história que se quer repassar e construir o episódio a partir das estratégias e procedimentos que vão facilitar isso. Dá trabalho.

Não vou comentar esses de cultura de react (que nem precisa ser negativo, mas no sentido que é o público que pauta ele com histórias, causos, questões etc), ainda mais que é algo que eu não tenho muito saco (e pra ser sincero, é apenas um terreno para critica formal foda fácil).

Os de mesa redonda, porém, fora algumas exceções, tendem a ser insuportáveis. O que parece haver ali não é nem um planejamento meticuloso dos tópicos (além da escolha do entrevistado) e nem uma verdadeira abertura para o entrevistado.

Não são poucas as vezes que eu fico irritado com o entrevistador querendo impôr as suas questões ao entrevistado de modo absolutamente desinteressante, me deixando com pouca vontade de continuar. O outro acaba sendo apenas o espaço para reafirmar as suas opiniões em outro campo.

Claro, não acho que seja fácil. Acho que conversar é muito difícil, dá trabalho entrar na dinâmica do diálogo, ver em que medida vale a pena você insistir com uma posição sua, ou que você está apenas reduzindo o outro aos seus interesses, ou que está o deixando livre demais.

Ainda assim, parece que nesses casos o elemento narcísico brilha mais. E as generosidades do entrevistado acabam rapidamente sendo engolidas pelas pautas do entrevistador. Não SURPREENDE que sempre sejam espaços onde o foco é essa coisa absolutamente vazia que é >o conjuntural<.

E bem, dá pra entender porque isso acontece: requer muitos recursos fazer algo bem trabalhado, exige tempo, exige uma espécie de criatividade e também uma abertura para o outro que deve ser cultivada e aprendida. E nem todos tem grana para fazer um podcast narrativo top.

Não dá pra negar porém (quer dizer, eu não consigo negar a partir da minha experiência anedótica) que tem ali sempre um desejo de ser prof, de ser quem transmite, de ser aquela pessoa que é capaz de dar luz aos outros, de esclarecer, ajudar no caminho (enfim, boas intenções!).

Mas por isso volto ao Micélio e o desejo de experimentar algo a partir da dinâmica da fala e da escuta, da voz. Acho que aí tem algo de interessante pois é como se o que fosse posto em primeiro plano não fosse nenhum conteúdo, mas simplesmente um procedimento.

Talvez eu seja influenciado demais por algumas bobagens (certeiras) que o César Aira fala, sobre como a criação artística é em certa medida a criação de procedimentos. Mas acho que de fato isso é o que faz toda a diferença (e é por isso que podcasts narrativos podem ser bons).

O foco no procedimento é a maneira como a gente tem para desviar os olhos das nossas fantasias irreais de estar transmitindo algo que talvez sequer exista (e que talvez sejam apenas o nosso desejo que eixsta). Acho que ele põe a gente num atrito que força a resolver problemas.

Ser fiel ao procedimento acaba portanto ser uma forma de conseguir desviar das imagens que se tem de si mesmo, dos desejos de ser alguém que discute coisas interessantes e ocupa essa posição de mestre/professor. Acho que a gente acaba sendo forçado a responder à outras coisas.

E por isso acho oportuno e interessante (embora também extremamente difícil, pelo tipo de responsabilidade que se assume) essa dinâmica da fala e da escuta que o Micélio elabora. É uma aposta socrática (e talvez seja um pouco minha admiração por ele falando).

É algo feio. É bruto (lembro aqui da passagem cômica dele zombando quem reclama dos graves’) e cuja bruteza é quase um teste. Mas é aí que está a beleza de Sócrates: ser o mais sedutor sendo o mais feio. E isso não deixa de estar conectado ao fato de que ele é também vazio.

Eu acho que esse é de fato um desafio, e uma experimentação, não tem outra palavra. Conseguir seduzir e produzir algo sem bells and whitsles, só com a dinâmica da fala e da escuta é possível em parte por conta dos envelopinhos vazios que o Micélio produz: não aprendemos nada ali.

E talvez pareça fácil, mas não é. Acho que o vazio é muito difícil pois é muito fácil resvalar num objeto, resvalar num sentido, em alguma coisa que nos faça aguentar um pouco o vazio, que nos reconduza a uma teia de conteúdos que vão dar contornos para a nossa desorientação.

E de novo: nesse ponto que o procedimento me parece fundamental, e é o que acho que diferencia esse tipo de proposta de muitas coisas que vingam (salvo, como falei, os podcasts narrativos, mas estes exigem recursos).

(O que não significa, claro, que todos os procedimentos precisam ser desse tipo, que a dinâmica de fala e da escuta monológica deve ser feita por qualquer um — nesse caso a coisa se transforma numa máxima e o conteúdo experimental vai pro ralo)


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