April 27, 2021

A especialização na filosofia e as condições institucionais do campo

Uma hipótese que tenho pensado bastante é que o tipo de filosofia que se faz e se produz agora está mais atada às suas condições de reprodução do que a disciplina gostaria de imaginar (já que talvez ela imagine seu caráter altamente especializado como fruto de rigor).

Suspeito que com a crise das humanidades nas universidades (menos empregos, tempo e recursos) os elementos materiais que condicionam o tipo de filosofia erudita e especializada que dominam atualmente (e que serve de crivo pro avanço de carreira) vai se visibilizar cada vez mais.

A divisão de trabalho intelectual e manual, a reserva de espaço do professor-pesquisador como intelectual dedicado com espaço pra erudição, a disponibilidade sem precedentes de acesso ao material de trabalho (livros etc), tudo isso parece conduzir a um profissional especialista.

Sob uma espécie de imagem de rigor, precisão e erudição, parece que privilegiou-se mais a troca entre pares internos (o que leva a uma maior especialização e diferenciação interna à disciplina) do que a construção de conversas para além de fronteiras disciplinares.

Mas incluiria como elemento fundamental que ajudou a dar forma à maneira como a disiciplina se organiza (mas que acredito que está mudando) uma certa limitação ou dificuldade recente (desde a 2GM) de como engajar o trabalho intelectual/de pesquisa em lutas emancipatórias.

Não quero dizer que foi uma geração despolitizada, mas tenho a impressão que boa parte da cultura do scholar na filosofia acontece num momento em que formas antigas de engajamento político foram fechadas e novas ainda não se desenvolveram completamente.

A consequência disso me parece ser a perda de interesse e estímulo para conversar com outros campos. Não é que a disciplina se fechou em si mesma porque quis. Acho que tiveram formas de troca com campos (não apenas outras disciplinas, mas outras atividades) que foram barradas.

Também não acho que o fim dessa figura especializada seja o fim da filosofia. Significa que talvez o tipo de coisa que a gente vai reconhecer como filosófico vai começar a operar por outros crivos (e possivelmente crivos menos eruditos). Talvez eu esteja sendo otimista.

Falo isso (e acho que fico insistindo) pois acho que boa parte do mal estar que a gente no campo sente (mas talvez gente de fora interessada também) é o descompasso entre a ideia da filosofia, de uma prática que de modo vago acreditamos que nos ajudaria e sua expressão atual.

Minha impressão é que essa expressão atual (cultura livresca, eruditizada e especializada) tem um lastro que a sustenta como comunidade (a possibilidade/promessa de empregabilidade) que não existe mais como horizonte (e que, aprendemos hoje, nunca existiu de fato).

Sem esse horizonte, que em nossa cabeça poderia em algum momento indefinido resolver alguns dos dilemas que vamos empurrando pra debaixo do tapete (“como tornar acessível esse campo que só se especializa?”), acabamos ficando apenas com o estado do campo atual e seus defeitos.

Ou seja: as hierarquias que perpetuam as distâncias. A meritocracia que aparece apenas como uma análise de quem tem recursos (tempo) para estudar e se preparar/publicar. O desenvolvimento de nichos/igrejas em torno de especializações que só servem pra se perpetuar. E etc.

O mal estar vem então do fato de que nós queremos algo desse mundo, mas não da forma que ele se desenvolve? Talvez eu esteja viajando aqui um pouco mais, mas acho que por isso é preciso remontar às condições do campo pra entender o que está travando e nos deixando frustrados.


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