February 1, 2022

A circulação de ideias no ecossistema filosófico nacional

A coisa chata de um ambiente filosófico nacional predominantemente historiográfico dividido em nichos de autores ou épocas é que isso acaba limitando demais a circulação de ideias para fora de certas rotas já pré-estabelecidas mesmo em pesquisas não historiográficas.

Tem muita ideia legal (em textos de história da filosofia ou não), mas parece que elas não circulam pois não tem o menor semblante de uma esfera pública aqui (mesmo que fosse diversa e inacessível em sua totalidade para pesquisadores individuais pela pluralidade de posições).

Acho totalmente besta essa ideia de autoralidade (“pensar em nome próprio” parece uma forma criptografada de defender propriedade intelectual). O que acho que faz falta aqui é uma liberalidade maior no uso das ideias e esquemas pra pensar problemas (e não apenas sua reverência).

Mas também não sei se essa prática de liberalidade seria possível instituir de modo voluntarista. Acho que é a maneira como a coisa se organiza aqui em nichos que impede isso, já que o crescimento na carreira parece estar associado à sua capacidade de reproduzir um nicho.

Impossível cultivar um perfil liberal quando qualquer forma de amadorismo e experimentação é rechaçado nas formas de avaliação e crescimento da carreira (só pensar nos processos de seleção de vagas efetivas e no papel da produção acadêmica na progressão de carreira e bolsas).

Não tem o menor estímulo e acho que um dos efeitos disso é que mesmo as discussões mais contemporâneas e temáticas (que em tese não deveriam se organizar dessa forma) acabam sofrendo desse mesmo engessamento. As discussões se tornam um fim para você consolidar um perfil.

Claro que há exceções… há uns esforços hercúleos (para quem conseguiu entrar) e fracassados (para quem não consegue atravessar a porta). Mas enquanto a forma de avaliação for da forma que é, é difícil imaginar a coisa modificando de figura.

O pior de tudo é que essa estrutura faz com que a possibilidade da liberalidade fique restrita aos que estão no topo da carreira. Como se fosse um prêmio de consolação por chegarem (ou terem sobrevivido) num ponto em que eles é que são os juízes.

Acho que por isso me interessa descobrir como organizar espaços em que o amadorismo seja o elemento estruturante. Isso implica em alguma medida luar contra uma noção vazia de especialismo (que no fundo é um auto-referencialismo que só reforça e reproduz uma determinada área).

Com isso não quero dizer que se deve ir contra qualquer forma de reflexão mais especializada (tem que ser muito tosco pra negar que se aprende demais com quem se dedicou a um campo de problemas específicos), mas que o espaço cultivado não toma o aprofundamento como valor em si.

O espaço do amadorismo precisa então encontrar outros critérios que permitam que se absorva os ganhos dos especialistas sem por isso se submeter a uma versão patológica sua.

É por essa razão que eu tenho sentimentos ambíguos com essa onda de filosofia pública”. Ainda que seja importante e interessante o deslocamento da filosofia pra fora da academia (pois a academia não esgota essa atividade), ela ainda é feita a partir de critérios de dentro.

Por isso que acho que um critério que me parece mais interessante para organizar esses espaços (e isso certamente é um efeito de certos espaços em que circulei e aprendi) é uma ênfase na transmissão.

Não transmissão no sentido de simplesmente reduzir um tema, simplificar. Mas transmissão como um esforço coletivo em que ideias passam a circular para além de suas supostas fontes (e nesse processo inclusive se autonomizando das fontes).

O que talvez implique que a transmissão não acabe produzindo uma homogeneidade, já que o processo de circulação é um em que as ideias vão se enriquecendo a partir do deslocamento de pontos de vista. No fundo a ideia sair do seu lugar torna ela mais completa (sem que seja única).

Mas é difícil falar essas coisas também pois um dos riscos desses espaços (e que talvez estimulam um retorno dos critérios especialistas) é uma certa fragilidade do que circula, como se as posições mobilizadas ali carecessem de fundamentação.

Acho que tem um temor quando se aproxima do amadorismo de que o que há ali é menor, menos verdadeiro. Mas tenho a impressão que isso é em parte um efeito da própria estrutura de especialização (ou seja, do saber como especialização).

Acho então que a suposta fragilidade do amadorismo é do ponto de vista amador um falso problema. Fico meio incerto, mas acho que seu critério, a transmissibilidade — seja no nível do entendimento, do uso e da própria efetividade em práticas —, de fato basta no ato de transmissão.


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