December 29, 2020

Comentários sobre a virtude da generosidade

Gostaria de ter um tempo pra pensar na generosidade como uma virtude não apenas ética, mas epistêmica. Infelizmente estou pensando isso pois estou lidando com um frila agora que é o avesso disso.

Tem algo importante, acho, em confiar na aparência, mas também confiar que as pessoas talvez não estejam sendo estúpidas ou malvadas. Claro, isso não serve para todas as situações, mas a virtude do generoso (em sua forma mais radical) talvez esteja em ser uma espécie de idiota.

É impressionante o quanto a leitura do outro enquanto envolvido na má-fé parece predominar. Claro, se a coisa é operada nesses termos é que é um procedimento bem eficiente. O problema é que o mundo fica terrível quando só olhado nesses termos. Fica miserável demais.

E de novo, acho que tem um certo gesto meio idiota de insistir na generosidade. Em crer que o outro pode não estar te passando a perna, em crer que não há tentativa de engodo, em crer que o outro também está — à sua maneira — tentando construir um comum contigo.

Eu acho realmente que é algo bem difícil. Mas ao mesmo tempo não é algo que precise que você >de facto< acredite no outro, apenas >de jure<. Ou seja, trata-se muito mais de um gesto superficial, da etiqueta, do que propriamente uma crença na boa fé do outro. É um tipo de truque.

(Não defendo com isso que se abandone qualquer tipo de análise crítica, de olhar que tente enxergar a má fé ou qualquer coisa do tipo. Deus sabe que o mundo é horrível, cheio de gente horrível etc. Acho que falo evidentemente de almejar um certo equilíbrio que é difícil).

Mas acho que tem certos gestos superficiais, certos procedimentos, que podem ajudar. Algumas coisas são bem simples: não tomar o outro como se ele estivesse na sua cabeça, como se tivesse em mira suas expectativas (que só podem existir na sua cabeça).

Talvez tentar entender que divergências de vocabulário não são nenhum crime e que omissões no discurso tendem a ser mais frutos de uma incapacidade de abarcar tudo do que de qualquer crime contra o estado. Claro, isso não vale para tudo, mas vale para certas relações.

Eu acho que ser generoso talvez seja (e talvez eu seja socrático) entender que o outro nunca tenta agir a partir do mal, que o mal é em boa medida mais fruto de certas ignorâncias (claro, algumas desejadas, pois são cômodas!) do que de as pessoas serem terríveis.

E não é que não existam pessoas terríveis, também acho que existem. Mas acho que também a gente precisa ser generoso e entender que a gente também é no olhar do outro essa pessoa que pode aparecer como horrível. E é difícil aceitar isso, se aceitar partilhando do mal.

E acho que aceitar que o outro também participa do mal, também está envolvido nele sem por isso ser definido por ele talvez pode nos inspirar (momento desnecessariamente otimista?) a entender que ganhamos mais tentando entender o outro para além de sua participação nisso.

Acho que é esse gesto de generosidade que eu gosto, que eu admiro em outras pessoas. Uma tentativa de desvencilhar o outro do que os contamina e que só parece ser possível quando se percebe que você também não escapa da contaminação. Mas o bonito é como se dá a descontaminação.

Sabendo-se que está envolvido no mal, que você também cai nele, que você também é escroto, tem seus momentos horríveis vergonhosos, todos sabemos que temos desses), não é a partir de uma auto-higiene que se sai disso, pois justamente não temos dimensão do mal que nos envolve.

É ao aceitar que você não tem como se limpar que talvez uma espécie de compaixão pode aparecer. Que talvez você pode se dar o luxo (e de fato é um luxo, e por isso é difícil, por isso não dá também pra cobrar que as pessoas sejam generosas) de olhar o outro de modo benevolente.

Eu acho que é bonito pois esse olhar pro outro >para além da má fé< (e claro, apenas quando é possível! óbvio que tem situações que isso não deve ser feito) é algo que efetivamente trata o outro em sua melhor versão possível, de modo que ela de fato passe a existir.

Por isso não é muito questão de achar que o outro é bom ou mal, mas de tratá-lo (quando possível) de tal forma que ele seja compreendido da maneira mais generosa, >como se< ele estivesse articulando numa direção comum mesmo que não pareça.

O que acho é que quando se faz isso o outro acaba de certa forma se tornando (pelas práticas, pelas maneiras como se produz uma abertura, um espaço comum) em parte isso. Não quer dizer que a pessoa vá ser virtuosa de agora em diante, mas que ao menos nessa situação funcionou.

Enfim. Acho que a coisa espiralou de uma forma meio louca. Acho que é um pouco o cansaço (e cansaço com esse frila de agora). Ficam aí essas reflexões exageradamente otimistas e totalmente esburacadas.


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