September 10, 2020

As dificuldades do esclarecimento

Pensando muito no texto do Kant sobre esclarecimento e devo admitir que concordo que na maior parte das vezes os esclarecidos” estão mais trabalhados em manter a distância entre o esclarecimento e os que preferem a passividade do que qualquer outra coisa.

É como se esclarecer”, nesses casos, fosse na verdade uma contínua projeção de ausência de inteligência no outro para marcar a sua posição no circuito da inteligência. Sobretudo quando se marca continuamente a dificuldade” da verdade (“venham, mas saibam que é perigoso”).

Claro que pensar é difícil, que dá trabalho, mas botar as coisas nesses termos só é possível pois o tipo de esclarecimento” que oferecem não é uma passagem da passividade pra atividade, uma compreensão de uma liberdade que já condiciona a escooha da passividade.

O que parece ser oferecido como esclarecimento é simplesmente a iluminação de algumas questões pontuais, um conhecimento sobre alguns temas específicos que em tese permitiriam a pessoa se localizar a partir da bondade e sabedoria donesclaredir ao revelar detalhes do mundo.

O problema é que ao lidar apenas com temas contingentes, evita-se tocar no ponto que realmente importa: que é que a capacidade de esclarecimento é inerente, que quem está na posição passiva está lá em certa medida por escolha. O esclarecimento adequado seria o que revelasse isso.

E é por isso que acho que esse esclarecimento do tipo deixa eu te ensinar algumas coisas” cola, pois ele reforça a escolha pela passividade por parte de quem consome, pois de fato é mais cômodo ser tutelado pelo outro, já que pensar é de fato cansativo.

Não surpreende que essa estrutura se veja replicada sobretudo nas elites, em quem tem poder e condições para gozar da passividade. Acredito (talvez esteja aqui desvirtuando Kant, mas quem se importa), a heteronomia tende a ser rejeitada sobretudo em quem é vítima de opressão.

Como se ela não estivesse em condições (por conta das circunstâncias que a cercam) de abrir mão de se posicionar no mundo de forma mais ativa.

Por isso que suspeito de várias iniciativas que vejo por aí de educação na internet, pois raros são os casos em que o buscado é a autonomização dos envolvidos (e acho que, como Kant marca, a autonomização aconteceria também com o tutor).

Na maior parte das vezes parece uma situação em que o que é transmitido” é a manutenção de uma estrutura em que quem está na posição de aprender pode reforçar seu desejo de não aprender ao delegar para o educador a tarefa de pensar por ele.

E nem acho que isso seja um gesto consciente da parte dos envolvidos, já que somos envolvidos por camadas de auto-ilusão. Mas acho que qualquer tipo de esclarecimento interessante é apenas um que esclarece sobre a própria capacidade de liberdade dos envolvidos já existente.

É aquele bon mot kantiano (e bem, tudo o que falei é aplicado aos casos em que se sustenta um esclarecimento”, não se aplica a tudo que se ensina): não se ensina filosofia [conteúdo], mas se ensina a filosofar [assumir sua posição de capaz de pensar que já existe].

Infelizmente o @toujourmicelio não aparece na minha tl, mas li depois essa mini-thread e acho que essa cultura de react é próxima ao tipo de esclarecimento que critico: https://twitter.com/toujourmicelio/status/1311101520209993729?s=21

Não é também questão de achar que é fácil sair dessa dinâmica, como ele aponta, já que o problema é que a escolha pela heteronomia/autonomia não se dá num nível consciente mas é uma espécie de escolha constituinte do nosso ser (algo existencial”?).


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