April 14, 2023

Não há filosofia sem um outro a mais

Ontem fiquei pensando que a única tarefa que me parece intrínseca à filosofia é trazer outras pessoas para dentro do campo. Como a filosofia não é um simples pensar sozinho, esse campo só pode se desenvolver na medida em que outras cabeças pensantes vão entrando na roda.

Definir o que é esse campo é um problemão, mas acho que inevitavelmente passa por uma preocupação com as formas (ou seja, com as formas que ser e aparecer se relacionam — ou a permanência na mudança), já que mesmo céticos ou relativistas estão inseridos nesse problema.

Mesmo o filósofo mais especializado/nichado não consegue fazer seu trabalho se em alguma medida ele não é capaz de trazer as pessoas para um certo nível de diálogo, se em alguma medida a validação das suas ideias (e mesmo de seus problmes — sua relevância) não passa pelo outro.

April 13, 2023

Alguns comentários sobre a ideia de public philosophy”

A existência de Public Philosophy” pressupõe a existência de uma private philosophy”? Filósofos anglófonos são engraçados.

Se os caras não estivessem concentrando 90% dos recursos do mundo em filosofia e ditando o que é considerado filosofia em suas instituições (por meio de uma cadeia de produção-ensino-pesquisa-edição imensa) seria cômico esse esforço de fazer circular a filosofia”.

A ideia de public philosophy é, óbvio, uma solução bem americana (“vamos para a mídia! vamos escrever para sua avó) para um problema que não faz nem sentido (a menos que você assuma que de fato existe essa divisão, que existe um trabalho filosófico que não é feito para circular).

Eu fico pensando e de fato, considerando a maneira como a filosofia americana se organiza, sua hiper-especialização, de fato tem uma certa divisão de trabalho. O problema é que dado isso o que a gente tem é uma divisão entre quem produziria e quem apenas consumiria.

Claro, os consumidores aqui não são os filósofos produtores, já que, como produtores, não falta shop-talk” entre eles. Mas se a filosofia tem uma vocação pública (pois ela se dirige a todos), então a vazão para esse espaço mais amplo parece tratar os de fora como meros leitores.

Os caras em vez de refletir sobre como essa divisão é o problema acabam inventando umas ligações mequetrefes que no fim das contas só mantém mais separados esses dois lados.

Mas acho difícil romper isso de dentro pra fora — afinal, a hiper-especialização tem como um efeito excelente na filosofia fazer a pessoa crer que quanto mais aprofundada” ela está, mais próxima se encontra de verdades (ou do filosofar, para quem tem vergonha dessa palavra).

April 3, 2023

O ponto de vista da crítica

Eu tendo a achar que é impossível criticar de maneira global qualquer posição teórica pela dificuldade de se assumir que 1) demanda um certo esforço, que é difícil de manter sem algum interesse e 2) pelo fato de que muitas das discordâncias decorrem de compromissos diferentes.

Mas o que eu acho que é a coisa que me deixa BOLADO é que tem algo muito forte de acaso na maneira como acabamos” em determinado campo. Antes de entrar nele (e se engajar nos seus comprometimentos) raramente temos capacidade de dimensionar suas implicações.

Sempre me lembro da anedota do filósofo da antiguidade Luciano (não lembro em que texto) que brinca com a ideia do tempo que demora para se familiarizar com uma escola filosófica, e como isso significa que poder dominar as várias escolas para depois compará-las é impossível.

Não significa que criticas sejam impossíveis, mas acho difícil, o que é uma pena. Pois significa que a gente ainda não tem bem desenvolvido estratégias consolidadas para lidar com coisas que discordamos mas que não temos engajamento suficiente (e nem vamos ter). É um problemão.

Hoje em dia uma das únicas estratégias de crítuca que acho válida (proj. STP) é ser capaz de situar positivamente uma teoria num enquadramento teórico mais amplo (de modo que ela se torna inclusive mais precisa nesse ato). Crítica via dimensionalização.

March 20, 2023

O morde-assopra da crítica literária nacional

Essa crítica literária” que você tanto fala está aqui na sala conosco?

A repetição desses textos sem fim (esse, os do Pécora e da Sussekind anos atrás) pra mim são um sintoma de que talvez nunca tenha existido no Brasil crítica literária como uma instituição relevante da cultura nacional.

Existem acadêmicos, estudiosos, historiadores. Mas crítica como uma espécie de mediador entre obras e leitores eu acho que realmente não é possível dizer. Talvez a gente tenha se enganado pela qualidade de alguns bons críticos, mas me parece uma ilusão retrospectiva.

Que tenha ocorrido debates, discussões em jornais em determinado período parece mais um sinal de que esses espaços eram apenas ocupados por uma certa elite que tinha condições de bancar a imagem de intérprete do Brasil” enquanto certa dominação se exercia em outras áreas.

No fundo eu tenho uma aposta (culpa do @ababelado) que há um ressentimento enorme por parte da elite letrada nacional que qualquer coisa que a gente identifique como nação” (seja para construí-la ou desconstruí-la) jamais tenha tido contribuição efetiva do campo dos letrados.

E nem entro no mérito aqui da nação como algo bom ou ruim, mas simplesmente como certos laços que existem (e que podem ser locais, não precisam abrir todo o país, mas que implicam em uma certa construção de afinidades”) foram construído por outros meios.

March 7, 2023

Sobre a misteriosa relação de Paulo Arantes com a filosofia

Pensando aqui nessa questão do Cian. Acho que existe uma ênfase exagerada em certos ditos do Paulo Arantes quando ele próprio também deixa entrever que sua prática se circunscreve no que ele entende como o que sobra atualmente da filosofia.

Ele comenta em alguns vídeos (e talvez no Fio da meada) que a filosofia como criação de conceito” não existe mais (não existiria desde Kant, apesar de alguns suspiros posteriores). Mas o que importa é que a profissionalização não é um fim do filosófico, mas seu deslocamento.

Esse deslocamento não é contingente. Tem a ver com a forma que uma certa referência vai se perdendo junto com a disseminação do capitalismo (e aí entra sua filosofia da história, sua particular” história do ser mediada pela entrada em cena do trabalho).

Agora, essa perda de referência tem várias fases (a esquerda hegeliana” e a ideologia francesa” são repetições dessa perda, da busca por permanecer na filosofia a partir de uma autonomização desse discurso como resposta à perda de referência.

Essa reação à perda de referência não é, porém, a única. Existem duas outras reações que me parecem fundamentais e que parecem de alguma forma fazer convergir na obra do PA.: entender e sistematizar as obras de quando havia uma referência e investigar a crise da referência.

A primeira remete a um espírito da historiografia francesa, que se converte num esforço pedagógico de munir gerações futuras com o espírito crítico”. O filósofo seria quem que ensina seus alunos (ou seja, repete-se aqui a corrupção socrática fundadora) o que filosofia pode ser.

Há nesse desejo de disseminar o espírito crítico” referências ao Kant, filósofo que consumaria o esvaziamento a referência com seu projeto crítico e à revista Clima e seu desejo de ensinar os jovens a saber pensar criticamente sobre sua realidade.

Como se pode ver, Paulo Arantes faz isso de maneira lapidae. No livro sobre Hegel, mas nas suas análises heterodoxas da tradição dialética, do uspianismo e da ideologia francesa.

Ainda que sejam livros esquisitos, e geralmente não-gueroultianos, delas se desprende o espírito crítico. Além disso, importante lembrar também como PA reafirma inúmeras vezes seu papel (quase uma missão) como professor. Ou seja, nesse ponto ele faz o que sobra aos filósofos.

Outro caminho que sobra aos filósofos, e que parece ser aquele que ele enxerga na tradição (cara a ele — imune ao seu raio crítico ) da teoria crítica (em sentido estrito, frankfurtiano, mas lato, como Marx e herdeiros) seria a investigação da crise dessa referência.

Eu acho que isso é bem filosófico, na medida em que de certa forma o que se descortina é um certo espírito do mundo (e que no Arantes aparece a maneira como as relações sociais determinam a forma das dimensões espaciais e temporais).

Essa preocupação, inclusive, aparece sobretudo na sua filiação à teoria crítica brasileira (Candido, Schwarz e companhia) e no seu apreço pela ideia de matéria brasileira” como objeto do pensamento. Há um problema que demanda ser pensado, entendido.

E ele demanda ser ainda mais pensado na medida em que de alguma forma parece conter um acesso privilegiado ao sentido (espírito?) do mundo. Pra ele (e aqui os dois caminhos se unem) o espírito crítico ajuda a pensar a matéria brasileira que se torna cada vez mais determinante.

A gente vê isso em sua trajetória, a maneira como ele vai da investigação da crise da referência (dos hegelianos de esquerda aos ideólogos franceses) para a busca pela referência da crise (a partir do problema da matéria brasileira e de suas análises dos conflitos sociais).

Não surpreende que nesse processo ele passe a se interessar não apenas pelos filósofos e suas formas de repercurtirem essa crise, mas também pela maneira como a referência da crise é elaborada e posta à luz por inúmeros cientistas sociais.

É por isso que acredito, que apesar de uma chiadeira habitual do Paulo Arantes, ele não só é inequivocamente filósofo, como ele também realiza perfeitamente o próprio conceito que ele dá desse tipo de figura (em sua possibilidade atual).

February 21, 2023

A dificuldade de pesquisar de modo contínuo

Pra mim acho que uma das melhores coisas da pós-graduação universitária em filosofia é te fornecer um lugar para colocar aquela angústia que vem de estar se concentrando demais em uma coisa, em um problema, de se dedicar continuamente a um tema.

Desde que saí do doutorado eu tenho tido uma dificuldade enorme em emendar coisas para constituir uma continuidade. A impressão interna é que consigo dar apenas tiros curtos (Platão é pra mim a exceção disso, mas algo que fiz quase que sem perceber, sem querer).

Volta e meia me vem à cabeça: queria fazer um outro doutorado, queria conseguir consolidar com paz algumas coisas que tenho pensado, mas (fora o tempo necessário para isso, já que sem bolsa) é óbvio que a questão é menos o doutorado e mais conseguir confiar nessa continuidade.

Desde ontem estou com uma frase do Lacan na cabeça (retirada do contexto talvez): é pela renúncia ao gozo que começamos a saber um pouquinho”


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